O SAGRADO FEMININO, POMBA GIRA E POVOS DE TERREIRO DE MATRIZ AFRICANA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES POLÍTICAS, DE SABERES CIENTÍFICOS TRADICIONAIS E DE GÊNERO

22/03/2019 02:44

            A atual conjuntura do país passa por um verdadeiro cenário apocalíptico em que a educação está sendo pautada unilateralmente pelo enfoque bíblico, a teoria criacionista judaico-cristã sendo recolada no âmbito da gestão passando por cima da constituição que legitima o Brasil como um Estado laico indo na contramão inclusive do que direciona a ciência moderna ocidental o qual lhe fundamenta em que pese um saber científico branco e eurocêntrico o qual já excluiu as ciências antigas que lhes antecediam, a exemplo da astronomia assíria, chinesa ou indiana. Afinal, houve um rompimento epistemológico entre as antigas ciências e as ciências novas que foram inauguradas assim em meados do século XVII um novo regime de saber.

        Sendo assim pensar hoje sobre educação e o fazer-se político com os povos indígenas e comunidades tradicionais me instiga a pensar em algumas direções em que o governo atual passa por cima que nem trator : a diversidade do fazer científico e dos saberes desses povos e a política para tratar com seus agentes sociais, bem como refletir sobre o papel do sagrado feminino dos povos de terreiro de matriz afro-religiosa no âmbito das lutas de um mundo mais tolerante,  menos machista e patriarcal o qual garante assim uma educação popular mais libertadora em que o domínio do sagrado feminino e o papel da mulher na sociedade deve ser pensada não somente pelas mulheres, mas também pelos homens, afinal as cosmovisões dos afro-religiosos ensina muito bem como a formação do mundo superior de suas divindades masculinas e femininas são processos alimentados e refletidos , de forma, dialógica e harmônica , endogenamente e exogenamente entre os membros de suas comunidades, independente, de gênero e sexualidade.

    Digo isto, pois a própria agenda de debates e formação da esquerda política e intelectual do país em algumas universidades, na maioria das vezes lideradas por homens, esquece de pensar o papel da mulher em suas programações e quando se debate o patriarcado na formação histórica do capitalismo é a revelia da tão importante análise do legado do matriarcado no mundo, especialmente, no contexto latino americano em que os afrodescendentes exercem um grande peso na composição populacional,  segundo a Comissão econômica para a América Latina e o Caribe ( Cealc) em meados desse século estaria em torno de 30% da região. Não obstante que uma virtude própria às culturas africanas que tanto influenciaram o mundo é ser matrilinear. 

    Para este perfil de esquerda masculina que acredita está fazendo (auto) crítica ao legado totalitário do patriarcado capital sem pautar o papel da mulher e sua formação no mundo antes, durante e depois do sistema capital não estão tão longe de “meninos veste azul e meninas veste rosinha” da surreal ministra  Damares, pois refletir sobre a  mulher na formação de sociedades não é domínio único do feminismo[1], mas sim uma questão de perceber o Outro, como muito bem apontou Djamila Ribeiro (2017) alicerçada em Simone Beavouir  “a mulher é o outro por não ter reciprocidade do olhar do homem” (p.38) e  seguindo na direção de Grada Kilomba (2010) que verifica que a mulher negra é o Outro do Outro , aqui podemos incluir as mulheres ribeirinhas, caboclas, as mestiças, afinal colocadas em uma posição ainda mais excludente de reciprocidade de serem vistas, refletidas, reconhecidas.

    A mulher nestes termos ainda é colocada a ser uma auxiliar do homem intelectual que apenas tem olhos pra si. Tal qual foi Eva uma costela de Adão.  Engrosso o coro novamente de Djamila Ribeiro quando diz “fazemos parte de um contingente de mulheres originárias de uma cultura que não tem Adão. Originárias de uma cultura violada, folclorizada e marginalizada, tratada como coisa primitiva, coisa do diabo...” (p.48).  E assim demonizam Exu, e relacionam Pomba Gira com prostituição quando ela é a própria guardiã e representação fêmea da sexualidade, da inclusão, da libertação! A Lilith liberta, a deusa mãe lunar negra. “Ela é mulher, ela é você!” Como bem reflete o sacerdote de umbanda Alexandre Cumino. Independente de gênero e/ou orientação sexual.

    É neste sentido que o sagrado feminino das religiões de matriz africana que estão nas teias das comunidades tradicionais, dos quilombos e de suas múltiplas linguagens ;  nos diversos laços das umbandas nas periferias das cidades nos ajudam a observar e a pensar no papel da mulher pelas lentes de seus povos e descolonizar uma cartografia histórica que pouco diz sobre os berços civilizacionais que vieram. Trata-se de sociedades civilizacionais africanas que constituíram o sistema sócio-político matrilinear desde os seus primórdios em que pese em sua constituição em ser um sistema que não implica uma dominação da mulher sobre o homem, mas sim o compartilhamento equivalente de privilégios e responsabilidades, inclusive, de poder. Estabelecendo e garantindo assim um equilíbrio estável entre homens e mulheres nos negócios do Estado.

    Não á toa Elisa Larkin Nascimento (2008) indaga por meio dos passos de Cheikh Anta Diop qual seria a civilização mais avançada aquela que nega à metade da população sua plena condição humana, no caso das sociedades patriarcais, ou a que reconhece e incentiva em todos os seus membros a capacidade de execução e participação da vida coletiva? No caso do modelo matrilinear (p.80).

    Finalizo a reflexão retomando o cenário conjuntural em que pese o fundamentalismo bíblico que bota em perigo e risco de vidas todo uma política educacional pluriétnico-racial.  Excluindo e chacinando ainda mais outras formas de conhecimentos e saberes advindos dos povos indígenas e comunidades tradicionais.

    Sendo assim elaborar diálogos que fundamentem a linguagem e as cosmosvisões de tais classes sociais étnicas é de suma importância para ressignificação, existência e resistência das identidades étnicas e memórias coletivas, estado de vida, patrimônio cultural e territorial desses grupos, como diria Otávio Velho

“Foi-se o tempo em que se podia aceitar coisas mortas. De uma forma ou de outra hoje os centros de ciências e saberes precisam nos comunicar testemunhos vivos e protagonistas verdadeiros das próprias histórias. Este é o caso presente, a depender apenas de sensibilidade e de abertura para que nos deixemos tomar por esta experiência de criatividade” (ALMEIDA; OLIVEIRA 2017)

    Nesta direção que constato alicerçada em Paulo Freire em sua Pedagogia da Esperança que aqui se localiza uma das tarefas mais árduas da educação democrática e popular a de possibilitar nas classes sociais étnicas populares o desenvolvimento de sua linguagem, jamais pelo viés autoritário, do masculino hegemônico e sectário dos “educadores”, mas sim por meio das linguagens dos povos que emergindo da e voltando-se sobre sua realidade, alinhe as conjecturas , os desenhos, a musicalidade, as artes, as (auto) cartografias, antecipando-se assim um mundo novo, logo a linguagem como caminho de descolonização e invenção da cidadania ( FREIRE, 1992. P. 20)

    Bibliografia:

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno; OLIVEIRA, Murana Arenillas. Museus indígenas e quilombolas: Centro de Ciências e Saberes. UEA-MANAUS. PNCSA. 2017.

FREIRE, Paulo.  Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1992.

KILOMBA, Grada. Plantation memories: episodes of everyday racism. 2 ed. Auflage. April. 2010.

NASCIMENTO, Elisa Larkin (org). A matriz Africana no mundo. São Paulo. Selo Negro. 2008

            RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte. Letramento. 2017.



[1] O que é domínio do feminismo é o movimento feminista, os espaços de seus debates, seus fóruns, que surge em prol das lutas por equivalência de direitos universais no mundo.

 

Tópico: O SAGRADO FEMININO, POMBA GIRA E POVOS DE TERREIRO DE MATRIZ AFRICANA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES POLÍTICAS, DE SABERES CIENTÍFICOS TRADICIONAIS E DE GÊNERO

Nenhum comentário foi encontrado.

Novo comentário