O REVERDECIMENTO DE UM VIAJANTE

03/02/2014 16:25

 

POR ALANNA SOUTO

 

O recomeço é o início de toda ação que foi paralisada, como um coito interrompido, mas sem a sensação de gozo e alívio. O processo é doloroso internamente, refazer, re-construir, quiçá mudar tudo e se alicerçar em “bases mais sólidas”, mesmo sabendo “tudo que é sólido desmancha no ar”, já diria Marx em Manifesto do partido Comunista no final do séc. XIX, bem antes de Marshall Berman.

A construção da solidez de qualquer cotidiano seja na luta de classes, nos conflitos de culturas, na consolidação da profissão, na intelectualidade ou até mesmo na vida emocional, no geral se dar com a quebra inicial do ritmo, das vicissitudes, dos hábitos ou ainda do rompimento quase sempre doloroso de toda uma trajetória na metade do percurso. É somente nesse momento que o erguimento da torre paralisa ou desmorona para que o construtor respire, reflita diante da ventania de poeira que lhe abate. Épocas de tempestades nem sempre podem vim acompanhada de telhas suficientes para lhe proteger dos possíveis granizos que hão de jorrar dos céus mais impertinentes dos abismos chamados, mundo e seres humanos.  Mas indubitavelmente a mão invisível estará lá e certamente não é a de Adam Smith.

O viajante sobrevivente de seu tempo, após alguns intervalos de afogamento e quebras de espelhos, já consegue respirar aliviado e todos os cacos de vidros já foram recolhidos pelo anjo da utopia, já não existe mais idealizações românticas, mas o que restou se transformou num amadurecimento profícuo e contínuo do silenciar diante do “fazer-se” atemporal, mesmo com cada hora cronometrada pelo senhor destino, transcendência e pragmatismo, caos e ordem. E o livre-arbítrio dependerá sempre da força de vontade em permanecer ou mudar, se o relâmpago da consciência indicar dor, perda, prejuízo do jeito que está não pode ficar, todavia a mudança só funciona quando se larga de mão das certezas, das [auto] afirmações e [auto] negações, tudo fica tão leve quanto in-certo, e dessa vez como nunca antes se sente os pés no chão.

O processo tátil com a terra dessa vez é diferente não é desaforado, nem apegado ou muito menos fincado, mas sim tênue como se a palma do pé tocasse de forma esparsa entre o ar e o solo, assim como a sutileza da águia em sua forma mais nobre ao abaixar a cabeça no alçar de grandes vôos, arrasta levemente as agarras no entremear de sua grande subida.

Na mente passam-se turbilhões de severidades desnecessárias reflexo de uma modernidade falida em suas ideologias, na execução dos seus sistemas “alternativos”, todos competitivos, o socialismo é real tanto quanto o anarquismo é pungente, teorias perdidas nos discursos de um cotidiano carregado em disputas por vanguardismo, da esquerda para direita, de cima para baixo, ninguém na verdade quer saber da dor do outro ou da superação ou muito menos da re-construção ou “que foi que aconteceu”?  O ser humano inexiste na era da sociedade em rede, da busca desenfreada por visibilidade mais para si do que para os seus, mais Eu menos Nós, a forja do coletivo, das ocupações esvaziadas pelo ego e por padrões jactanciosos [ e obsoletos?] de luta. Adormecidos se esquecem do simples, porém sábio dizer de Leminski: En la lucha de clases / todas las armas son buenas / piedras, / noches, / poemas...

Os tempos mudam, as utopias ficam nos papéis e os corações se enrijecem, o homem se petrifica em suas vicissitudes em estado de sono profundo, o desassossego de um ser que transita do lado para outro fingindo se importar, talvez somente com acordes dissonantes de harpas celestiais alcance o despertar. Debruçar-se como uma criatura verdadeiramente materna, não como Cristo que está para além de qualquer compreensão racionalista, mas quem sabe como o tão humano e inigualável Fernando Pessoa que em seu próprio Desassossego lidava com suas angústias envergando-se como uma mãe velando o sono tanto dos filhos bons quanto dos filhos maus, enternecendo-se com sua largueza desmesurável poética diante do Absoluto. Será que aí se encontra o segredo da revolução e da sua constituição revolucionária enquanto governo?

O despertar materno de cada indivíduo que o conduz naturalmente a um amor absoluto quando pro- cria ao direcionar seu olhar para além do seu umbigo. A idéia é justamente essa, ao sermos parideiros uns dos outros, o amor passa ser o foco do debate, das vivências e da verdadeira solidariedade, mãe do seu vizinho e vice-versa, “mães” essenciais que sobrepõe conflitos por amor, assim como eloqüentemente capazes de guerrear por esse mesmo sentimento, seus “filhos”. Parir um novo mundo é preciso, parir o outro e padecer no paraíso, mais do que isso, parir-se é necessário para o despertar  dos sonhos lúcidos, gerar e  perpetuar uma nova humanidade...

Na escalada do [re] fazer-se a resignação é o tijolo base da torre que está sendo erguida pelo viajante ainda melindrado com algumas perdas recentes, com o julgamento superficial do mundo, feridas fechadas, mas não apagadas, afinal a cicatriz é a marca de uma dor que foi saturada, mesmo que sobrepujada, a memória re-existe naquele que viaja, o realçar do vôo e de suas histórias re-contadas, no reverdecimento da sua colheita, a chuva não cessará de regar as sementes, flores e frutos porque são tempos dos céus compungirem-se por seus filhos, crentes ou descrentes dos seus papéis, o apodrecimento ou amadurecimento é inevitável, o que fará a diferença no resultado é a disposição sensata para a escolha libertadora, muitas vezes dolorida para quem carrega muitas cargas para se livrar, contudo, independente das limitações, como anjos caídos, todos temos asas para voar...É quando a mão invisível “fulmina o injusto, deixa a nua a justiça ...”

E ainda assim faltam muitas milhas para alcançar o Amor. Tão longe, tão perto...

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