O DEBATE ÉTNICO-RACIAL NO PROJETO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DA AMAZÔNIA – ALGUMAS REFLEXÕES PARA O ENSINO MÉDIO

14/05/2016 20:49

 

Espaço Nangetu/ Coletivo cursinho popular (R)Existência 

POR ALANNA SOUTO

Começo a reflexão com o enunciado da questão que caiu no ENEM 2015.

O Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia ensina indígenas, quilombolas e outros grupos tradicionais a empregar o GPS e técnicas modernas de georreferenciamento para produzir mapas artesanais, mas bastante precisos, de suas próprias terras.

LOPES, R. J. O novo mapa da floresta. Folha de S. Paulo, 7 maio 2011 (adaptado).

A existência de um projeto como o apresentado no texto indica a importância da cartografia como elemento promotor da :

A) expansão da fronteira agrícola.

B) remoção de populações nativas.

C) superação da condição de pobreza.

D) valorização de identidades coletivas.

E) implantação de modernos projetos agroindustriais.

 

Na referida questão o debate étnico-racial está inserido quando se busca debater e entender o espaço para além da lógica de concebimento espacial engendrada pelo poder do Estado o qual busca ordenar esse espaço por meio de projetos de desenvolvimentos econômicos que raramente são sustentáveis ao meio ambiente e a população, oprimindo e invisibilizando as diversas outras práticas espaciais, sobretudo, o espaço vivido das populações que ficam de fora deste espaço concebido.

Nesse direção devemos entender antes de tudo o espaço a partir de seus múltiplos aspectos e não como algo absoluto. O espaço (social) oriundo do produto (social) e vice-versa, sendo assim dialeticamente inseparáveis num materialismo histórico-geográfico no qual a produção do espaço – ainda que não “dominante” no modo de produção – gera a partir deste, ao mesmo tempo, relações sociais e espaciais, sem que haja correspondência exata entre elas.  Se o espaço social intervém no modo de produção, ele também se modificará conforme muda os modos de produção e as sociedades.

É nesse sentido que devemos apreender o espaço de modo a entender que ao longo da história do sistema capitalista ele foi colocado à sociedade de forma colonizadora não apreendendo suas múltiplas práticas espaciais e de espaços vividos, reprimindo as vozes desses espaços das representações advindas, por exemplo, dos povos originários e das chamadas populações tradicionais, o espaço simbólico e quiçá clandestino.

Nesta perspectiva o filósofo do espaço Lefebvre (2006) ajuda-nos a pensar a produção de um espaço social apropriado no qual a sociedade geradora se posiciona nas formas, apresentando-se e se representando de modo processual e contínuo.  Ganha assim um contorno de uma triplicidade do espaço da forma que mencionamos acima:

a)  A  prática  espacial,  que  engloba  produção  e  reprodução,  e  que  assegura  a  continuidade numa relativa coesão.  Ela secreta o espaço de uma sociedade, ela o produz, dominando-o e dele se apropriando. Corresponde ao espaço percebido, e no neocapitalismo ela associa a realidade cotidiana (o emprego do tempo) e realidade urbana (os percursos e redes ligando os lugares  separados  do  trabalho,  da  vida  privada” e dos lazeres).  b)  As representações do espaço, ligadas à “ordem” das relações de produção, aos conhecimentos, aos signos e aos códigos.  Correspondem ao espaço concebido dos cientistas, tecnocratas e urbanista, no qual as concepções espaciais tendem para um sistema de signos verbais elaborados intelectualmente. Trata-se do espaço dominante numa sociedade (num modo de produção).  Elas são penetradas de saber (conhecimento e ideologia) sempre relativo e em transformação.  Abstratas, elas entram na prática social e política.  c)  Os espaços de  representação,  que  apresentam  simbolismos  complexos  são ligados ao lado subterrâneos da vida social e à arte. Correspondem ao espaço vivido através de imagens e símbolos, espaço dos habitantes e usuários. Trata-se de espaço dominado, mas que a imaginação tenta modificar e apropriar, e que tendem também para sistemas  mais  ou  menos  coerentes  de  signos  não  verbais.  Penetrados de imaginário e de simbolismo, eles têm por origem a história de um povo e de cada indivíduo. Eles têm um núcleo afetivo: o Ego, a cama, o quarto, a casa, a praça, a igreja, o cemitério.  Eles contêm os lugares da paixão e da ação, os das situações vividas. Refere-se assim a um espaço qualitativo, fluido e dinamizado, que por isso recebe  as  múltiplas  denominações  de  direcional,  situacional  ou  relacional.  (LEFEBVRE, 2006, p.58-59).

Nesta diversidade que se organiza o espaço é importante que os sujeitos/membros de determinados grupos sociais transitem nesta triplicidade do “percebido; concebido e do vivido” de modo a saber distingui-los e buscando estratégias de empoderamento e territorialidades, ou seja, demarcações próprias dentro do espaço concebido, supostamente dominado pela ordem estabelecida.

A cartografia — grosso modo, pode se dizer uma técnica de mapeamento de representações do espaço — é um dos instrumentos mais utilizado desde os tempos do Egito antigo e até mesmo muito usada por nossos ancestrais ameríndios como forma de demarcação do território para legitimação do poder, a exemplos dos mapas antigos que até hoje os indígenas mexicanos, especialmente os de Chiapas, guardam a 7 chaves, elaborados pelos seus ancestrais Maias. E, obviamente, que os hispânicos e lusitanos os quais colonizaram as Américas em séculos posteriores usaram também os mapas como instrumento de controle da soberania, da disciplina e da gestão governamental.

E nestas representações do espaço e de gente, os indígenas e os escravos africano nesta cartografia da conquista, ou melhor, da invasão de meados dos séculos XVI, XVII e parte do século XVIII, comumente representados de forma estereotipada nas iluminuras, seguindo na verdade a perspectiva de duas ideologias  concorrentes  a  respeito  dos  povos nativos  que  habitam  fora  do  continente  europeu,  geralmente  descritos  nos  relatos  dos  viajantes,  dos conquistadores,  missionários,  dentre  outros  cronistas  desses  povos:  A  figura  do  mau  selvagem  e  do  bom civilizado e a figura do bom selvagem e do mau civilizado. Tais visões estereotipadas que passam por cima do “olhar de si” do ser em observação e, recheadas ou não de termos religiosos nessa “antropologia” espontânea desta época irão contaminar até nos dias hoje a perspectiva sobre esses povos, especialmente, o senso comum. (LAPLANTINE, 2003, P.25-32)

Desde então o mapeamento do espaço brasileiro e amazônico foi direcionado de modo a invisibilizar as vozes dos rios, das florestas, dos espaços caboclos, comunidades negras rurais e urbanas da Amazônia. Projetos depredatórios, a lembrar os projetos desenvolvimentistas dos anos de 1970 da ditadura militar, baseados no binômio “segurança e colonização” que visava, sobretudo, desmobilizar as lutas do campo no Norte e Nordeste, ações totalitárias em sua execução, não estabelecendo dialogo nenhum com as populações locais.

O projeto nova cartografia social da Amazônia surge em meados de 2000, organizado pelos pesquisadores Alfredo Wagner e Rosa Acevedo, problematizando esse espaço de poder do Estado e das elites, aonde a inclusão étnico-racial se fará a partir do momento que se entende que grande parte da população amazônica ficou ao longo da história alijada de todo processo de visibilidade social, excluídos em seus direitos de terra e feridos em suas identidades culturais. Logo dando voz para que esse excluídos e seus grupos sociais produzam os seus próprios mapas, mapeiem seu território, geograficamente e etnograficamente a partir dos seus próprios olhares e saberes, valorizando e empoderando assim suas identidades coletivas e também servindo de alicerce pela luta de seus direitos territoriais.  O que faz a alternativa correta da questão acima ser a letra D.

É importante abrir um parêntese referente a questão étnico-racial quando se trata de Amazônia, devemos lembrar em que se tratando de Brasil é a região mais expressiva de presença indígena e todo seu processo de ocupação desde a colonização lusitana até meados de 1950 em sua maior parte se deu no padrão Rio, várzea-floresta. Aonde diversas comunidades indígenas que foram fragmentadas em função da agressiva colonização, culminou nas comunidades ribeirinhas caboclas pós 1750 em sua raíz mais embrionária, havendo diversos encontros desses indígenas e “caboclos” nos variados contextos históricos com os escravos africanos, que também marcaram a Amazônia, enegrecendo a floresta, especialmente, na formação de mocambos, nas festividades culturais, a exemplo, dos batuques afro-indígenas no Marajó; as brigadas cabanas; e  tais encontros étnicos irão marcar fortemente as comunidades negras atuais, a lembrar os quilombolas contemporâneos e até mesmo os povos de terreiros de matriz afro, a citar o tambor de mina com diversas entidades e práticas de pajelanças caboclas, trabalhos de curas na linha de pena e maracá  que remetem a cultura indígena.

Logo, os movimentos sociais que lutam pelo empoderamento dos grupos e comunidades étnicas excluídas na Amazônia não devem perder de vista está composição afro-indígena, a identidade negra e cabocla, fortes marcas das populações amazônicas que muitos já chamam de afro-Amazônicas.

É nesse sentido também que devemos refletir sobre a formação do espaço social dos ancestrais destas chamadas comunidades tradicionais e das populações indígenas na Amazônia para assim perguntar, questionar, o que a cartografia histórica tem debatido sobre a produção do espaço social dessas populações, por exemplo, na Amazônia Colonial? Ou sobre os espaços sociais transformados durante a maior revolta popular do pós-independência do Brasil, o movimento cabano no Pará? O que se tem de vestígios desse passado para o melhor entendimento desta nova cartografia social das populações indígenas e das comunidades tradicionais do presente?  É necessário, portanto, retomar os percursos, os mapas e fazer o caminho de volta.  Por isso urge necessário a construção de uma cartografia etno-histórica que remonte os aspectos sociais e culturais dos nossos povos ancestrais, afro-indígenas nos espaços amazônicos coloniais, em especial a população indígena e a emergente população “cabocla” a partir de sua mobilização, migração e imigração concomitante os indicadores demográficos e sócio-espaciais disponíveis. Tais investigações estão sendo feitas por mim, fruto da minha pesquisa de doutoramento no NAEA/UFPA e que em breve estarei defendendo para então socializar as repostas dessas questões com vocês. Quem sabe, futuros enunciados do ENEM para gerações posteriores.

 

Aranauam!

Saravá!

 

REFERÊNCIAS

ACEVEDO  MARIN,  Rosa  Elizabeth . A importância da história, da geografia e daCartografia na análise  da  formação  social  e  territorial  da  Amazônia.  In.:  MONTEIRO,Maurílio de Abreu;Coelho, Maria Célia Nunes & BARBOSA,Estevão José (Org). Atlas sociambiental- Municípios de Tomé-Açu, Aurora do Pará, Ipixuna do Pará,  Paragominas e Ulianopólis. Belém, NAEA, 2009. p. 464.

ADONIAS, Isa. A cartografia da região Amazônica. Conselho Nacional de pesquisas. Instituto Nacional de pesquisas da Amazônia. Rio de Janeiro. 1963.

CARDOSO, Alanna Souto; MARIN, Rosa Acevedo. Capitania do Pará: emergência daquestão da população e debate sobre regimes demográficos restritos. Papers do NAEA,Belém, n. 344, p. 1-20, dez. 2014

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2003.

LEFEBVRE, Henri.  A produção do espaço.  Trad.  Doralice  Barros  Pereira  e  Sérgio Martins (do original:  La production de  l’espace. 4 éd. Paris:  Éditions Anthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006.

TAVARES, M. G. da C.  A Amazônia brasileira: formação histórica-territorial. IN. GEOUSP- Espaço e tempo, São Paulo. No. 29- Especial. Pp.107-121. 2011