ERÊS (Uma carta para Miguel, sobrinho e afilhado, 3 anos)
Por Alanna Souto
Belém, 27 de setembro de 2016.
A umbanda é uma religião genuinamente brasileira, essencialmente afro-ameríndia. Estudos que não faltam e muito menos se esgotam a respeito da religião no âmbito acadêmico. Eu mesmo sou estudiosa dessa religião vai fazer uma década, e vivenciei a umbanda por 6 anos da minha vida, abnegando dias da minha semana para me fazer presente com todo amor e honra à ancestralidade, aos orixás e guias da umbanda dentro de uma gira.
Há 4 anos houve um rompimento entre eu e a casa que fazia parte. Sair do templo, pois esse havia deixado de ser aldeia e virou igreja, culto à personalidade, fanatismos e perseguições das crenças afros alheias, além de outras bizarrices, coisas as quais vão à contramão a essência “tribal” e não institucionalizada da umbanda.
A voz do patriarcado até me ameaçou de chegar perto de qualquer um que fizesse parte da seita que se transformou, mas, obviamente que já não havia mais sentimento nenhum para tal aproximação e retorno. Afinal, a ancestralidade que sigo, a voz de comando é feminina e não um ser encarnado que se esconde atrás da representação patriarcal para querer amedrontar aqueles filhos e filhas que tiveram a coragem de se libertar e questionar por amor à umbanda o que o reflexo do espelho estava nos mostrando...e sim, meu bem, era uma imagem invertida extremamente feia, mamãe Oxum, também, deve ter lamentado.
O que me levou a reviver essa memória foi a leitura de uma reflexão escrita na página do historiador Luiz Antônio Simas no dia de ontem em que ele deu uma cutucada justamente nesse tipo de fanatismo. Contudo, a crítica dele é pautada nos fanáticos neófitos que abraçam assistencialismo “branco” e elitista que distorcem a tradição da louvação aos Erês no dia de São Cosme e Damião numa questão meramente de doações de doce e brinquedos, mas não de “diálogo” e conexão com a ancestralidade africana que sincretizou Ibeiji com esses santinhos católicos, assim como fizeram com outros orixás em tempos da escravidão do Brasil de outrora como uma forma de resistência pela permanência e vida de sua tradição.
Na tradição católica São Cosme e São Damião foram dois irmãos gêmeos e médicos, rezam as lendas que eram arábes e viveram na Silícia às margens do Meditêrraneo e desencanaram por volta do ano 300 d.c. Por conta de exercerem a medicina sem cobrar nada à população mais carente e desfavorecida foram santificados. São ainda chamados anárgiros que significa aqueles que não são comprados por dinheiro e no calendário litúrgico romano celebra-se sua data no dia 27 de setembro. São considerados como padroeiros dos médicos e farmacêuticos. Além de invocados como protetores das crianças pelas suas perspectivas simples e inocente em lidar com a vida.
A linha dos Erês faz parte da divina trindade da Umbanda formando assim um triângulo em conjunto com os caboclos e os pretos velhos. Logo, assim como essas duas outras linhas de trabalho são entidades intermediárias dos orixás, contudo conectados diretamente com Orixá Ibeiji o qual na cultura ioruba significa nascimento duplo, pois assim eram chamados os gêmeos que nasciam, prenuncio de bom agouro e boa sorte para a família, crença essa baseada na cosmogonia africana em que o ser humano surgiu em dois, ou seja, nos gêmeos. Filosofia que lembra, a priori, analogicamente a representação de Adão e Eva no cristianismo, obviamente, que se trata de outra perspectiva e outro panteão simbólico.
Uma imagem bem marcante na umbanda e no candomblé em relação às representações de São Cosme e São Damião é que geralmente são representados junto aos dois santos católicos, aparece no meio ou próximo uma criancinha vestida igual a eles. Essa criança que surge como terceiro fundamento desse mistério de São Cosme e São Damião foi chamada de Doúm ou Idowu — traduz-se em sua etimologia, o que vem depois dos "gêmeos" — que personifica as crianças com até sete anos de idade, sendo ele o protetor das crianças nessa faixa etária.
E pela força dos africanos ao selarem seus duros e cruéis destinos ao cruzarem as águas atlânticas sob o comando do mercado escravagistas tocaram seus pés nessas terras chamadas Américas, mas não perderam o foco de sua tradição e sua fé é que direcionei minhas vistas terrenas, físicas e limitadas num sábado de corrida por Santa Maria de Belém do Grão- Pará, era o dia 24 de setembro do corrente ano numa partida de largada do Santuário de Fátima no bairro aonde moramos, quando alcanço, como se fosse uma miragem, dois meninos entre 6 e 7 anos sentados próximo do topo mais estreito do estacionamento que se localiza a paróquia, ambos abraçadinhos, o da esquerda de shortinho vermelho e o da direita de shortinho azul, sem blusas, posicionados de costas para igreja, não de forma desrespeitosa, mas numa postura que sua direção e foco está para além do templo, miravam o céu, contemplavam o pôr- do- sol, pois é de lá que vem seu norte, quiçá seu lugar...Imagem mais bela que os comerciais do “criança esperança” da rede globo, eu alcancei. Certamente por ser essencialmente mais verdadeira.
A miragem de dois caboclinhos amazônicos, herdeiros de uma herança não somente imaginária e simbólica, mas alicerçados também numa cultura material ancestral afro-ameríndia, marcada, especialmente, nos espaços amocambados da resistência, dos rios para a capital, que somente uma cartografia etno-histórica pode representar suas origens, contextos e percursos. Ainda assim, meninos e meninas viventes da cidade, moradores da periferia que transitam pela cidade, filhos e filhas das matas do passado, não retira deles as raízes marcadas em seus pés e foco daquilo que realmente são... A “memória” resiste na luta pelos seus espaços e dentro de seus corações.
Mas o mistério de São Cosme e Damião, Miguel, meu bem, já diria o capoeira:
“O segredo de são Cosme
Quem sabe é são Damião.”
Salve a alegria de viver!
Salve essa força e tradição!
Representação São Cosme, São Damion e Doum na umbanda
Representação de Ibeiji na cultura ioruba
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