CANTO PARA AS AMÉLIAS: SEXUALIDADE E RESISTÊNCIA EM TEMPOS DE CHUMBO

25/03/2014 21:29

Fonte: Passeata dos cem mil. [á frente na foto, Caetano e Gil]  Rio de Janeiro, 26/06/ 1968. O GLOBO


fonte: S/l

 

Por Alanna Souto

 

Olha no relógio, marca 00:00, 25 de março de 2014.  Amélia anda pela casa e lembra que exatamente há 53 anos sua mãe morreu num leito de um hospital, havia sido levada presa quando no caminho para cadeia sentiu as dores do parto, teve apenas força em pari-la, já muito abalada fisicamente e psicologicamente com a forma que foi arrancada de seu apartamento, não resistiu e faleceu. O dia 31 de março de 1964 é a data que marcou os tempos de golpes de uma sangrenta ditadura militar. Para os ativistas, educadores e escritores lembram desse período como o dia da mentira, o 1o de abril, em que militares e conservadores perseguiram mulheres, artistas, pesquisadores que contestavam a ordem de uma estrutura em que o presidente da época João Goulart estava disposto a fazer amplas reformas que eram pertubadoras para sociedade dominante do período.

Amélia folheia calmamente o diário de sua mãe, vítima dos tempos de chumbo, a vontade que tinha era de cair em prantos, seu coração se contraia, angústia lhe apertava o peito, depois de muitos anos de terapia, resolveu finalmente ler aquele diário. Nunca foi fácil para ela que praticamente durante toda infância e parte da adolescência teve que viver clandestinamente com a companheira de sua mãe num interior da Bahia, protegidas e purificadas pelos mistérios do Rio Subaé.

Desde pequena já familiarizada com essa outra forma de amor, homoafetiva, guardava com esmero todas as fotos as quais as duas estavam juntas em seus diversos momentos, as passeatas estudantis, os encontros românticos na cidade maravilhosa, a vista em Copacabana e finalmente o selo da união das duas, Amélia fruto desse amor clandestino, mesmo que por um ébrio e acidental sêmen numa das ocasiões que haviam terminado o namoro, sua mãe engravidara e, claro, que o amor daquelas duas mulheres era imenso o suficiente para levar adiante aquela gestação que por fim as uniu ainda mais em seus contextos de lutas e utopias, a guerra no mundo era fria, a América Latina desbundava nos trilhos dos generais, a rua enlutada de democracia gritava na voz de 100 mil pessoas, a alma embrionária de Amélia já suspirava o calor arrebatador daqueles tempos e o fervor daquele amor.

O ano era de 1968, em dezembro foi instalado o golpe dentro do golpe, reporta sua mãe logo nas primeiras paginas do diário, o “AI-5 foi o ato institucional mais cruel de toda história do Brasil republicano”, sem direito a voz, nem habeas corpus, alguns dizem até que o sorriso foi proibido e obviamente toda nudez era castigada.

Pará um instante a leitura, toma um gole de café, ver as horas novamente, quase 2 horas da manhã, sua visita chegará ás 6 horas, vinha de algum lugar da Amazônia, há algum tempo não se viam, estava ansiosa em rever aquela pessoa que durante muito tempo lhe provocava os mais controversos dos sentimentos, do amor ao ódio, do respeito ao cuspi na cara, dos mais ínfimos desejos ardentes á frivolidade... Redigiu então uma carta, um desejo de reajuste de contas a pagar, um reconhecimento e um pedido de socorro, sem esperança de resposta, afinal havia sido envenenada por sua própria língua bipolar e geminiana, ainda sim foi correspondida, quiçá por intervenção divina.

Insone, o que lhe restava era esperar por aquela mão amiga quase maternal que viria ao seu [re]encontro e que misteriosamente coincidia exatamente no dia que entregaria o diário original de sua mãe a coordenação da Comissão Nacional da Verdade do governo federal brasileiro para ser avaliado como registro de diversos nomes de jovens desaparecidos naquela época,não somente militantes políticos, mas também gays, lésbicas e trans, a sexualidade oprimida e massacrada naquele cotidiano obscuro da ditadura militar, todavia, onde o coletivo e a transformação social vinha a frente de qualquer ego ideológico.

Há algum tempo a juventude não debutava , solidária,gritava, armava-se com pistolas, poesia e flores. Secos e molhados, mutantes de si e de um tropicalismo transcendental. Sem castrações e padrões de ideais.

De 1968 em diante caminhos de luta eram diversos, muito além de esquerda e direita, num universo infinito em desencanto....

Folheou mais algumas paginas e surpreendentemente encontrou um relato que diz respeito ao encontro de suas mães com uma das personagens mais emblemática da história da esquerda armada daquele Brasil totalitário, muitos desses nomes já conhecemos a maioria homens: Prestes, Lamarca, Marighela... só que um desses era uma mulher que havia se identificado como militante Wanda ou Estela do Polop , sua mãe não recordava ao certo, pois eram muitos codinomes os quais aquela jovem moça de 17 anos usava para se identificar nos encontro políticos, as suas próprias mães usavam também pseudônimos em alguns desses encontros.

Contudo, o que tornava esse evento especial, era o fato de se tratar de uma das primeiras reuniões do movimento LGBT, e lá estava Wanda ou Estela ou outro vulgo que seja, o certo que tal mulher se tornaria presidente do Brasil 46 anos depois, o seu papel ali era dialogar com esse movimento a fim de conciliar suas questões com a esquerda ortodoxa e machista da época, inclusive algumas feministas preconceituosas, a lembrar das militantes do MR-8, e assim pautar as demandas sociais dessa população no programa de luta de classe.

É sabido de todos que a esquerda libertária, socialistas e anarquistas no Brasil, teve grande dificuldade em incluir a população LGBT em suas discussões programáticas, ação que só começou a ser, de fato, realizada no período da redemocratização e consolidada no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, refletiu a Amélia.

O processo foi mediado por outra figuraça da época, que fez o contraponto fundamental com a juventude exaltada de ambos os movimentos, por ser mais velha, além de ter uma vasta experiência no debate e muito respeitada pelo movimento LGBT, ela, a guru da literatura erótica homoafetiva, a escritora mais proibida da ditadura [segundo os censores editoriais do período], a divina Cassandra Rios, que ponderou muito bem as colocações de ambos os lados, selando o acordo com um beijaço na boca da nossa futura presidente, aplaudidas de pé no plenário.

Infelizmente, o final desse encontro não terminou tão bem, as informações da reunião vazaram para o SNI, os generais mandaram prender todos os participantes do evento, principalmente as lésbicas mais transgressoras, sendo assim feito a caça às bruxas. No dia posterior, a milícia da ditadura invadiu o apartamento da mãe de Amélia, reviraram tudo e mesmo a vendo em estado de gravidez deram uma bofetada em seu rosto, caindo desmaiada no chão, foi quando a levaram... Por sorte ou não sua companheira havia saído para organizar os detalhes finais do parto.

Dias depois desse dia fatídico numa ação quase cinematográfica, pois não queriam entregar a bebê para os avós a fim de usar como isca para capturá-la, disfarçada da irmã de sua parceira, com ajuda da família desta, conseguiu recuperar a Amélia no berçário do hospital, enquanto o policial disfarçado havia se distraído com uma loira gostosa paga exatamente para isso. E lá estava ela, recém-nascida, pequeninha e silenciosa, como se tivesse esperando por aquele colo que lhe traria todas as lembranças de sua mãe natural e lhe daria todo afeto, proteção e cuidado que um ser em desenvolvimento deve ter, com fone no ouvido sua outra mãe sobrevivente e resistente de seu tempo cantarolava para ela: “ por toda minha vida eu vou te amar, em cada despedida eu vou te amar, desesperadamente...”

Toca o interfone, Amélia desperta de suas lembranças cantando a música de sua infância com lágrimas nos olhos, abre a porta, era ela, a cura de seu vício e sua dor, o seu grande amor,que singelamente lhe abriu os abraços e cantou: “ eu sei que vou te amar , por toda minha vida eu vou te amar, em cada despedida eu vou te amar...”

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CharlesDymn 15/09/2014

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