ALGUMAS NOTAS DE VIAGEM NO TEMPO HISTÓRICO: FONTES, ESPAÇOS E PAJELANÇA INDIGENA
fonte: "Mapa que contém a entrada para o Rio Amazonas com a posição da costa boreal da ilha grande de Joannes..." ano 1798. Localizado no Acervo de cartografia da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. Foto: Alanna Souto.
POR ALANNA SOUTO
O tempo essa unidade física-transcendental que nos toma e nos consomem em uma velocidade que varia subjetivamente quando medido por nossos anseios nem sempre podendo ser calculado pela relação distância versus velocidade para o cumprimento do cronograma seja ele qual for... Ás vezes, simplesmente nos escapa, mas ainda assim se quer cavalgá-lo, domá-lo, na verdade se trata da eterna busca pelo autodomínio. Assim como o ato de escrever e criar, se manusear pouco ou se parar, a inspiração se ressente, enferruja, a magia da criação se sente machucada, a palavra dissertada perde o foco e a vontade de compartilhar se fadiga. É preciso força e disciplina para a escrita.
Reflito rapidamente sobre o tempo, ele tão inerente no dia-a-dia da humanidade e tão intrínseco no devir. Para, além disso, o tempo faz parte do meu ofício como um filme a ser decifrado. Nele o ser humano é o protagonista a ser analisado num espaço determinado por alguma certa duração. O tempo da história, afinal como diria o saudoso mestre Marc Bloch, “é o próprio plasma em que se engastam os fenômenos e como o lugar de sua inteligibilidade”. Um tempo verdadeiro de natureza contínua e, também, de perpetua mudança. E da antítese desses atributos provém os grandes problemas da pesquisa histórica, finaliza o sábio.
E sob o faro desse viés do tempo histórico que desembarquei na cidade do Rio de Janeiro entre os dias 23 de junho e 9 de julho,como todo bom marujo alicerçado pelos nortes dos grandes capitães da história a fim de navegar nos mares documentais dos arquivos históricos da antiga capital do país, naveguei nos principais e mantendo o foco nas mapotecas desses acervos buscando pescar, registrar os mapas coloniais da Capitania do Pará, especialmente aqueles que representasse os indígenas e africanos em suas cartografias, tendo em vista não ter encontrado esse tipo de documentação desse período nos arquivos locais.
Destes acervos vale fazer um destaque a biblioteca nacional, a grande mãe deste vasto mar de fontes do período colonial à atualidade, segundo a UNESCO,a maior biblioteca da América latina, nela se encontra para mais de 10 milhões de itens, haja fôlego! Obviamente, muitas pesquisas já foram feitas a partir do manuseio dessas fontes, contudo os pesquisadores de regiões mais distantes, a citar Norte e Nordeste, ainda pouco consulta esse acervo, a documentação referente à Amazônia colonial e imperial no que se refere às populações, o mundo do trabalho, seja a mão-de-obra livre, branca ou escrava africana ou ainda a força de trabalho indígena há uma vasta documentação pouco explorada pelos pesquisadores amazônidas da contemporaneidade – salvo raras exceções a citar os trabalhos da “velha guarda” da Clio amazônica, as pesquisas da historiadora Patrícia Sampaio, a demografia história do Xingu da norte-americana Arlene Kelly ou os estudos dos sistemas agrários de Maria Nazaré Angelo-Menezes, dentre outros – que poderiam lhes ajudar a suscitar novas problemáticas de pesquisa ou auxiliá-los nas investigações de suas pesquisas atuais sobre essas temáticas e esses recortes históricos.
Certamente está presencialmente nesses arquivos há custos – deslocamento versus alimentação versus hospedagem, dentre outros –, entretanto é um investimento que vale a pena e se tens bolsa de pesquisa programe-se é um mergulho transformador tanto para o pesquisador quanto para sua pesquisa, apesar de parte da documentação está disponível online, mas a maioria desses documentos está lá nas estantes, nos rolos dos microfilmes, esperando pelo seu olhar e faro.
Outro momento dessa viagem no tempo histórico foi à experiência etnológica e “espiritual”participando do curso de ervas medicinais ministrado pelo Pajé Tobi Itaúna em Cachoeira de Macacu no RJ, organizado pela produtora cultural Jequitibá produções. A convite do casal de ativistas Wellington Lira e Aline Germano,diretores da produtora, obtive uma bolsa para fazer o curso. Das representações indígenas do passado colonial que tanto busco nos mapas, dei um pulo para o presente e fui beber nas fontes de uma cultura que atravessou os tempos, a pajelança, em especial, a cura por meio das ervas medicinais.
O pajé Tobi Itaúna oriundo da etnia tupi guarani, sua povoação natural advém do estado do Amazonas, passou a residir noRio de Janeiro ainda criança quando se separou de sua família e depois retornou a “aldeia”, fazendo desde então intercâmbio entre a cidade e o povoado, entre o “branco” e o índio.
O ervanário do pajé Tobi foi catalogado pelo projeto “Museu de arte e Origens” da FAPERJ, coordenado pela profa. Dra. Dinah Guimarães, no final do século XX com objetivo de registrar, preservar e expressar os modos de vida e os costumes dos índios Guarani que habitam três aldeias – Bracuí, Paraty Myrin e Araponga – do Estado do Rio de Janeiro, tanto dos “aldeados” (ou vivendo em terras protegidas pela FUNAI-Fundação Nacional do Índio) quanto daqueles agentes indígenas urbanos (ou já adaptados à vida nas cidades do país), levando em consideração a contraposição desses dois agentes.
Interessante notar que mesmo o Pajé Tobi transitando entre os dois âmbitos destes agentes, o curso de erva medicinal manteve em sua realização a ritualística nos moldes da tradição da cultura tupi-guarani desde o começo com sua abertura, defumando os participantes, “sacralizando” o local aonde as ervas ficaram guardadas para o estudo, o rito diante das fogueiras iluminadas pelo brilho do luar, o dia de estudo das ervas no combate das enfermidades e por fim o preparo dos remédios naturais (garrafadas, chás e xaropes de ervas). Nesse endereço da jequitibá produções seguem os registros fotográficos desses momentos do curso www.facebook.com/media/set/?set=a.419971434865459.1073741865.337881633074440&type=3
No primeiro dia do curso fomos presenteados com um lindo luar, foram feita duas fogueiras uma para purificar, limpar a corrente (os participantes) e outra para desmanche de energias negativas, demandas, “quebrar força inimiga”, segundo palavras do Pajé, além de um canto de louvor na língua tupi em reverência ao deus Nhanderú, o deus supremo dos tupis-guaranis. Tudo com muita alegria e uma conexão incrível com a natureza, típica da cultura guarani.
O segundo dia foi de ensinamentos do Pajé a partir do seu caderno de estudo no qual foi sistematizado as principais ervas pelos pesquisadores do projeto “Museu de arte e origens” a partir do processo de preparo dos remédios para cada enfermidade. Nesse primeiro módulo foram priorizadas dez receitas para o combate dos males de gripe e resfriado, dor de garganta, males do estômago, inflamação no útero, problemas reumáticos, problemas renais, problemas do fígado, males do coração, fraqueza sexual e diabete. Contudo, segundo Pajé Tobi, no seu ervanário há ervas que ajudam na cura de aproximadamente seiscentos e oitenta males. No curso o pajé pode trazer apenas uma pequena amostra dessas ervas para a realização da atividade em função da grandiosidade do seu ervanário.
O terceiro dia foi de finalização dos estudos das ervas catalogadas no caderno, a entrada na mata para o ensinamento de identificação das ervas, o plantio e os nortes para a colheita, tudo nos moldes ritualístico da tradição guarani. Além de observações extras do pajé que complementava com alguma planta ou orientação importante sobre cada receita.
Um dos momentos mais interessante, dentre tantos desse aprendizado, foi o exercício de concentração ao se fazer na hora da consulta à pessoa enferma a fim de se conectar com seus guias, espíritos da natureza para que lhe ajude a identificar melhor as doenças e as ervas necessárias para a cura, sem a necessidade de entrar em transe, experiência incrível até para aqueles que não têm fé.
Nesse aprendizado com Pajé Tobi Itaúna podemos também notar o quão a pajelança indígena contemporânea dos guaranis da Mata Atlântica se aproxima da pajelança cabocla da Amazônia, das erveiras do Ver-o-peso em Belém do Pará, apesar de que essa seja bem mais sincrética, na medida em que dialoga com alguns ritos cristãos, no momento que se orienta a fazer orações nos banhos e rezas para os enfermos, afinal foram mais de 500 anos catequização, assimilação acabou por ser inevitável.
Chegamos ao final da viagem, lembro nesse instante dos meus capitães da história que me nortearam todo o percurso, dos annales aos bons rebeldes da historia vista de baixo, não se esquecendo do olhar minucioso de “mitos, emblemas, sinais” do grande Ginzburg, da minha nobre orientadora do doutorado, profa. Rosa Acevedo, a capitão-mor de muitas esquadras marítimas dos rios de águas doce da história amazônica, a inspiração em que me passa em seguir meu ofício de fazer história, de forma interdisciplinar, retorno a superfície, do tempo histórico das representações indígenas nos espaços em produção da Amazônia colonial ao espaço das representações indígenas por meio das práticas de curas das ervas medicinais na minha amada Santa Maria de Belém do Grão-Pará.
Cheguei e vamos às escribas, da cartografia ao sagrado selvagem das sociedades tradicionais e o sagrado selvagem da civilização ocidental, quem domestifica quem? Nem tanto ao céu, nem tanto a terra, já nos deixou a dica um dos grandes capitães dos mares da antropologia Roger Bastide.