ÁFRICA E AMAZÔNIA NAS VEREDAS DA CARTOGRAFIA SOCIAL DOS POVOS TRADICIONAIS: DIÁLOGOS ENTRE DOIS MUNDOS

25/03/2019 00:36

Por Alanna Souto[1]

 

APRESENTAÇÃO

 

Entre os dias de 19 de março e 07 de abril de 2017 desembarcaram em terras brasileiras, especificamente, nos estados do Maranhão, Amazonas e Pará, pesquisadores quenianos, Prof. Samuel Owuor (University of Nairobi), Hillary Ogina ( Kenya Land Alliance- KLA) e Johanna Wanjala (Kenya Land Alliance- KLA) em intercâmbio, cooperação técnica e científica no âmbito do projeto “Cartografia Social, capacitação técnica de pesquisadores e movimentos sociais no Quênia e no Brasil”[2] em parceria do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) juntamente com a Universidade do Estado do Amazonas (UEA), o Programa de Pós-graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia (PPGSPA) da UEMA e o Núcleo de Altos Estudos da Amazônia (NAEA-UFPA) .

A dinâmica de atividades nestes dias se distribuíram entre visitas institucionais; pesquisa de campo, trocas de experiências e de formação nas comunidades tradicionais que atuam junto com o PNCSA.

Vou tratar nesse texto de dois momentos em que estive participando junto da equipe do PNCSA que acompanhou os pesquisadores do Quênia nessa jornada de trabalho no Pará em suas visitas atuantes nas comunidades tradicionais que visavam especialmente, apreender as técnicas do PNCSA enquanto objeto de pesquisa em que as comunidades investigadas passam ser a viabilizadores de seus próprios croquis e mapas, realizando assim um outro tipo de cartografia em que o Estado em seu mapeamento administrativo não visibiliza em suas representações do espaço- o espaço concebido . Tais [auto] cartografias mapeiam seu território, geograficamente e etnograficamente a partir dos seus próprios olhares e saberes, valorizando e empoderando assim suas identidades coletivas e também servindo de alicerce pela luta de seus direitos territoriais.

Sendo assim o primeiro momento dessa troca de saberes entre Quênia/África e comunidade tradicional paraense em que estive presente se deu em Belém do Pará quando levamos os pesquisadores do Quênia ao Instituto Nangetu[3] de tradição afro-religiosa e desenvolvimento social, comandado pela Mametu Nangetu em seu terreiro. O segundo momento se deu quando visitamos as comunidades quilombolas do Marajó em que houve o compartilhamento de trocas de experiências entre os quenianos visitantes e os quilombolas do Marajó.

O objetivo desta reflexão visa tratar da importância do intercâmbio acadêmico entre África e Amazônia não somente para o desenvolvimento e aplicabilidade de projetos sociais de pesquisa nas comunidades tradicionais que envolvem esses dois “mundos” ,que tem como ponto comum central os destinos cruzados violentamente em tempos de colonização , mas sobretudo, para o melhor conhecimento da memória e dos contextos históricos que envolve a trajetória dos quilombos da Pan Amazônia e África, bem como a relação similar com as realidades enfrentadas pelas comunidades tradicionais do Quênia, como bem foram avaliadas pelos pesquisadores quenianos.

Visitando um “Quilombo urbano” – Povo de terreiro de matriz africana Mansu Nangetu

No dia 30 de março do corrente os quenianos Hilary Ogina (Kenya Land Alliance), Johanna Wanjala (Kenya Land Alliance) e Samuel Owuor (Universiy of Nairobi) realizaram uma visita institucional inicial ao Núcleo de Altos Estudos da Amazônia da UFPA com direito à boas vindas pela coordenação do programa de pós-graduação dessa instituição (PPGDSTU) e pela equipe de colaboradores do PNCSA coordenada pela profa. Rosa Acevedo Marin, composto de discentes e docentes da UFPA, dentre os presentes é merecido registrar:  Solange Gayoso (PNCSA/UFPA), Dalva Maria Foro da Costa (Discente do Curso de Educação do Campo, Abaetetuba), Eliana Teles (PNCSA/Campus Abaetetuba-UFPA), Cristiano Bento, (PPGCS/UFPA) Hisakhana Corbin (Vice-coordenador do PPDSTU/UFPA), Rosa Acevedo (PNCSA/NAEA-UFPA), Bruna Caldas (PPGA/UFPA/PNCSA), Jurandir Novaes (PNCSA/Faculdade de Economia-UFPA), Alanna Souto Cardoso (PNCSA/PPGDSTU/UFPA), Elielson Silva (PNCSA/PPGDSTU/UFPA), Thiago Alan Guedes Sabino (PNCSA/UFPA), Danilo Rezegue (PNCSA/PPGDSTU/UFPA), Nelson Ramo Bastos (UFPA), Ruthane Silva (NAEA/UFPA) e Kerri Brown (Doutoranda-Universidade Metodista de Texas).

Feita as boas vindas, a profa. Rosa Acevedo fez uma breve exposição dos objetivos que abarcam o projeto “Cartografia Social e Treinamento Técnico de Pesquisadores e Movimentos Sociais em Quênia e Brasil” aos presentes e logo em seguida a equipe de trabalho do PNCSA fez uma rápida apresentação dos trabalhos mais recentes desenvolvido pelo PNCSA em que o principal questionamento dos quenianos era como se chegava até os mapas, sendo assim mostrado alguns croquis e mapas feitos por algumas comunidades tradicionais e uma explicação por parte de quem participou da equipe que compôs a gestão destes trabalhos, direcionando e munindo as comunidades de ferramentas para a realização de suas auto cartografias locais[4].

Finalizada a reunião institucional levamos os pesquisadores quenianos até o terreiro e instituto Mansu Nangetu para conhecer esse povo tradicional de matriz afro-religiosa que participou da elaboração do mapeamento dos afro-religiosos em Belém do Pará, coordenado pelo PNCSA.

A visita no Mansu Nagentu contou com a presença da mãe de santo e dirigente do instituto, Oneide Rodrigues, mais conhecida como Mametu Nangetu. E teve como intérprete a doutoranda naquele momento, a afro-americana Kerri Brown.

Nessa ocasião os quenianos foram muito mais ouvintes dos relatos feitos pela Mametu Nangetu, especialmente, porque as religiões tradicionais do Quênia[5] não fizeram parte daquelas que vieram com diáspora africana forçada pelo tráfico de escravos para as Américas no período da colonização[6], contudo ter conhecido uma comunidade tradicional de terreiro de raiz angolana os ajuda apreender de que forma se dar essa relação entre ciência e os saberes afro-religiosos para então relacionar e aplicar o mapeamento com as realidades das comunidades tradicionais quenianas, especialmente, aquelas absorvidas pelos cultos tradicionais.

Mametu Nangetu refletiu sobre a importância de trabalhos como o mapeamento dos afro-religiosos em Belém do Pará, coordenado pelo PNCSA[7], que ajudou a visibilizar as comunidades tradicionais de matriz africana, bem como combater o preconceito, a intolerância religiosa e até mesmo a repressão do Estado, afinal como bem enfatiza Arthur Leandro (Tatá Kinamboji) em um dos relatos contido no livro resultado dessa pesquisa: “(...) a constituição nos dar o direito de culto , o direito de consciência religiosa, mas o Estado reprime” (IPHAN/PNCSA, 2012,p.97). 

É nesse sentido que trabalhos realizados pelo PNCSA com os povos afro-religiosos tanto no Maranhão quanto em Belém do Pará buscam dar dimensão para os povos de terreiros enquanto categoriais sociais detentoras de um saber tradicional que se expande para além do espaço físico do terreiro em suas lutas por direitos e (re)existência. Um exemplo disso são as constituições de mapas temáticos que a partir dos seu espaço das representações cartografado buscam demonstrar a relação do terreiro como uma forma de constituir uma visibilidade que pode reverter exclusões e preconceitos dirigidos aos membros dessas comunidades ou ainda o fortalecimento social de suas organizações coletivas e representativas.

Outro ponto importante destas auto cartografias dos povos afro-religiosos são suas territorialidades visibilizadas nos mapas. Sendo eles os protagonistas do processo a partir de seus próprios critérios para definir os elementos que compõe seus cultos religiosos e sua autodefinição. E a partir dos encontros e oficinas realizadas elaboraram discursos e relatos sobre as vivências que passam enquanto afro-religiosos dentro e fora dos terreiros. Tais registros relatados pelos próprios agentes resultou na produção de um saber que se traduz como um conhecimento científico específico por meio de suas práticas atualizadas. Nos mapas eles representam suas casas, seus locais de coleta de ervas e espaços sagrados (IPHAN, PNCSA, 2012, p.12).

Mametu Nangetu lembra ainda em seu relato aos quenianos e a equipe do PNCSA de um trabalho pioneiro com os povos de terreiro que merece o registro nessa análise. A dissertação de mestrado pioneira da profa. Anaíza Vergolino, “O tambor das flores”, nos anos de 1970, inaugura no mundo acadêmico amazônico uma percepção política da organicidade dos terreiros de umbanda em Belém do Pará. Mametu recorda do papel de desbravadora que fez a pesquisadora em uma época que as organizações afro-religiosas no Brasil estavam tateando sua representação formal, a federação Espírita Umbandista e dos Cultos afro-brasileiros do Estado do Pará mostrava-se pelas lentes de Vergolino bem firme e articulada. Assim como ela bem retrata uma das festas mais bonitas e calorosas da federação, o Tambor das flores, revelando toda alegria e maestria de um saber tradicional, especialmente, dos povos de umbanda e o tambor de mina mais retratados na obra.

E já no final do diálogo conosco Mametu Nangetu finaliza sua reflexão fazendo uma referência histórica ao seu terreiro, chamando-o de “quilombo urbano” em alusão aos quilombos históricos que correspondia espaços de resistência nos sertões das Capitanias, próximos de rios e alagados diante das arregimentações de trabalho, a repressão e a escravidão impostos pelo Estado Colonial. O chamado “campo negro” por Flávio Gomes (2005), não correspondia apenas negros insurgentes da senzala e dos seus senhores, mas todo uma teia de intercâmbios sociais e econômicos entre os fugitivos e escravos, grupos indígenas, vendeiros, negociantes, pequenos proprietários e eventualmente até fazendeiros, atores sociais que se tornaram direta ou indiretamente seus aliados. 

É neste sentido de espaço de resistência negra afro-religiosa que Mametu chama o seu terreiro de “quilombo urbano”, simbolicamente, pois assim como os quilombos do passado colonial composto por atores advindo de diversos segmentos sociais e etnias, mas sobretudo, o povo negro que compõe o seu terreiro de raíz Angola que luta pela manutenção de seus cultos e práticas historicamente, bem como a luta contra a repressão do Estado e demarcação de seus direitos territoriais no espaço urbano.

O QUÊNIA E AS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO MARAJÓ

            A atividade com as comunidades quilombolas no arquipélago do Marajó e pesquisadores quenianos se deu no dia 01 de abril, organizada pela equipe de trabalho do PNCSA sob a coordenação da Profa. Rosa Acevedo Marin.

Atividade de capacitação entre os pesquisadores do Quênia e comunidades quilombolas foi dividido em dois momentos.

  1. Apresentações gerais, relatos de experiências e da aplicabilidade do PNCSA por parte das comunidades quilombolas

Pela parte da manhã no dia 01 de abril foi o momento das apresentações. Inicialmente apresentaram-se os convidados: Prof. Samuel Owuor (Universidade de Nairobi) – “Estou aqui em conjunto com os dois pesquisadores de Quênia para trocar experiências, aprender e apreender com a produção do mapeamento social dos quilombolas do Marajó”; Johanna Wanjala- (Kenya Land Alliance- KLA), especialista em geoprocessamento. “E eu gostaria de apreender com as técnicas aplicadas dos mapas geoprocessados das autocartografias realizadas pelas comunidades do Marajó a partir do método do PNCSA”; Hillary Ogina (Kenya Land Alliance- KLA) também se manifesta no sentido da troca de experiência, da apreensão das técnicas e método do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia enquanto objeto de pesquisa social que será aplicado, conforme as realidades das comunidades tradicionais no Quênia.

Em seguida as lideranças das comunidades quilombolas presentes se apresentam aos convidados nominalmente e informam suas funções nas comunidades. Fizeram-se presentes sete comunidades: Pau furado, Bacabal, Deus ajude, Providência, Bairro alto, Rosário e Tartarugueira. Posteriormente foram elencados lideranças de algumas comunidades para relatar sinteticamente a realidade de sua comunidade tradicional quilombola e aplicabilidade do mapeamento social em suas comunidades, afinal os quilombolas são os principais agentes do projeto, atuam como pesquisadores de todo o processo de elaboração dos mapas.

  • Seguem alguns resumos e trechos dos relatos dos pesquisadores quilombolas[8]:

Roberto, quilombo sítio conceição no município de Barcarena. Faço parte do grupo de alunos do PNCSA do mapeamento dos quilombolas indígenas do município. A importante experiência do PNCSA de mapeamento da auto cartografias indígenas e quilombolas que reivindicam reconhecimento por lei de suas identidades e territorialidades não somente quilombolas, mas também indígenas. Nesse sentido as comunidades produzem seus croquis que irão resultar nos mapas das comunidades. Já possuem o certificado de quilombolas pela fundação de palmares. E ainda estão lutando junto ao INCRA pelos seus direitos de terras.

Maria José- Fala da experiência do PNCSA como de fundamental importância para compreender os limites de seus territórios e de suas territorialidades perdidas. Hoje ela mora em pau furado e percebe que a luta não é apenas do pau furado, mas uma luta por direitos de todos as comunidades de Marajó. E a intensificação de conflitos com fazendeiros sob respaldo do governo federal atual.

José Luiz-      Fala um pouco da experiência da comunidade Deus ajude que passou a unir forças entre comunidades quilombolas e a universidades. E avalia como as auto cartografias auxiliadas pelos pesquisadores do PNCSA passa a se conflitar com os interesses e os latifúndios dos fazendeiros. Na comunidade de Salvar, os fazendeiros estavam impedindo de mesmo o funcionamento regular das comunidades quilombolas. O PNCSA também desperta a luta pelos direitos coletivos e a recuperação da memória. Estes mapas da PNCSA retratam as auto representações espaciais, de modo, a evidenciar suas auto identidades territoriais não retratadas nos mapas oficiais. A criação do grupo juventude Abayomi que significa cuidar de mim. A ideia é capacitar jovens para se fazerem lideranças em defesa das comunidades quilombolas. E grande contentamento do retorno do PNCSA para o Marajó.

Reginaldo, profa. música - Comunidades quilombolas tartarugueira. Antigamente a terra era de um fazendeiro que foi ocupada há mais de cem anos por descendentes de escravos. A comunidade já avançou muito no que se refere em alguns de seus direitos coletivos. Tartarugueira passa ser referência para as comunidades mais próximas. Tartarugueira fica em frente da Baia do Guajará. Próximo de Santana.  Tartarugueira não está representada no mapa oficial e por meio do seu destaque na luta por seus direitos irá ser representada no próximo mapa oficial do Estado.Tartarugueira também se destaca por suas praias e beleza natural. Na comunidade não pode existir hotéis e nem carros. A visível melhorias das casas e dos direitos básicas de moradia foram garantidas pelo governo federal. Associação quilombola de tartarugueira já muito avançou em questões no que se refere as questões de acessos a sua sobrevivência por meio da luta e garantia do seus direitos sociais. A dificuldade de transporte para Belém ainda continua ser um grande obstáculo de acesso à capital.

  • Dalva, compartilha das suas experiências da comunidade de São Raimundo do Alto Acará. Atualmente mora em Nazaré. É uma comunidade ribeirinha assentada. Avalia que a luta no Acará ainda está muito distante da realidade quando comparado com algumas conquistas de direitos alcançados pelas comunidades quilombolas do Marajó. A maior parte das fábricas de extração de óleo está localizada no município de Acará, e hoje, advindas da empresa Bio palma da vale do rio doce, muitos rios estão sendo poluídos e devastados pela exploração não sustentáveis em mais de 90 comunidades católicas. Atualmente a profa. Rosa Acevedo está buscando desenvolver projetos de identidades e luta pelos direitos territoriais coletivos.
  •  
  • Finalizado os compartilhamentos de experiências dos elencados representantes quilombolas abriram-se a oportunidade para que os pesquisadores quenianos tratarem do que apreenderem dos relatos.

Prof. Samuel, começa a reflexão dizendo que os relatos proferidos lembram muito as experiências vividas pelas comunidades tradicionais no Quênia. Diz ainda que a mulher e a juventude, também, são atores sociais muitos ativos na sociedade queniana em diversas frentes de luta. E que falará mais destas questões pela tarde.

Hilary diz também, assim como profa. Samuel que há muitos conflitos raciais entre tribos e os grupos dominantes, apesar do Estado do Quênia tem uma constituição avançada tal qual tem o Brasil.

Johana, eu também estou muito encorajada com as experiências do PNCSA nas comunidades pela sua luta de direitos e de entender o espaço de forma diferenciada. E mais tarde falaremos mais sobre isso (tradução livre, Kerri Browm).

  1. Pela parte de tarde abriram-se para as explanações dos pesquisadores quenianos aos quilombolas do Marajó

Os pesquisadores quenianos trataram das experiências do Quênia e as similaridades com a realidade das comunidades locais quenianas para viabilidade do Projeto Nova Cartografia, conforme as vivências dessas comunidades tradicionais.

O profa. Samuel inicia a reflexão lamentando o não comparecimento de Richard Chemuchuk, representante do povo Endorois, do Quênia, pois teve problema de visto. Ele seria o representante de uma comunidade indígena africana parecida com as comunidades quilombolas do Marajó, diz ele. E profere “trata-se de parceria da universidade do Quênia, PNCSA e UEMA. Levaremos as experiências do PNCSA para implementar nas comunidades quenianas com auxílio dos profissionais da ONG KLA”.

Ele destaca o papel da mulher e o da juventude nas comunidades quenianas. As mulheres passaram tomar a frente dos movimentos se tornando visível em situações pouco frequentes numa sociedade conservadora. Segue alguns trechos da sua fala:

Agora gostaria de compartilhar a história de uma mulher importante no Quênia, que faleceu em setembro de 2011, a professora Wangari Maathai. Ela foi uma mulher muito forte, principalmente nas questões que envolve a preservação do meio ambiente e do empoderamento da mulher. Fez parte do movimento cinturão verde que objetivava plantar quantas árvores foram possíveis. Centenas de árvores foram plantadas por mulheres. As mulheres diziam: “nós precisávamos das árvores para nos abrigar, as mulheres precisam usar árvores de diversas maneiras”.

A profa. Wagari Maathai foi muito além, protegeu as árvores que o governo queria devastar. Defender os espaços verdes da universidade e das cidades. Ela invocava centenas de mulheres do cinturão verde a defender os espaços verdes que o governo desejava explorar. Este governo convocava a polícia para reprimir o movimento.

Então mulheres passaram a usar diversas estratégias para se proteger. Construção de tendas para impedir o acesso do governo e polícia. Em outro momento ficaram nuas em suas tendas. E somente assim a polícia parou de invadir as tendas, pois na cultura queniana, os homens não podem ver as mães nuas.

A juventude que está hoje aqui tem o compromisso com suas identidades e com seus futuros. A juventude encoraja as outras gerações a lutar por seus direitos e seus territórios ancestrais. (Tradução livre, Kerri Browm).

            Hilary, trata da ONG Aliança da terra, resumidamente e didaticamente.

Aliança do Quênia une várias atores de diversas cidades. E vivem uma realidade semelhante com as vivências relatadas pelos representantes das comunidades quilombolas.

Agricultura exerce um papel muito importante. É historicamente, assim como o Brasil, os colonizadores expropriaram as terras quenianas.  E infelizmente, o Quênia estava sob o controle dos britânicos. Esses forçaram os quenianos abandonarem suas terras. E os colonizadores rompendo com as perspectiva queniana “terra coletiva”. Nos últimos anos as leis foram mudando e algumas terras foram garantidas para a população negra.

Há um outro problema que se parece com o que ocorre no Brasil. Os negros que se comportam como “branco”, assim passaram a elaborar leis da terra para favorecer os brancos e a elite negra.

Em 2020 será implementado uma nova constituição que muita semelhança tem com a constituição brasileira de 1988. Uma coisa é ter uma constituição no papel. Outra coisa é implementar a lei do papel.

Outra luta é garantir os direitos da terra as comunidades quenianas.

Por isso eles estão realizando essas atividades em parceria com o PNCSA a fim de levar as experiências das comunidades quilombolas com suas autocartografias para implementar na produção de uma nova cartografia que visibilize as comunidades quilombolas. (Tradução livre, Kerri Browm)

Johanna- Trata das realidades de terras na África.

Há uma grande diferença entre a terra privada e a terra das comunidades. E os donos de propriedades sempre desrespeitam as terras das comunidades. Ano passado uma nova lei foi aprovada em relação a propriedade privada.

Muitos da terra do Quênia sofrem com exploração do petróleo e dos minerais.

O que estamos aprendendo aqui levaremos para as comunidades a fim de que essas comunidades se habilitem e se instrumentalize em lutar pelos seus direitos usando ferramentas as autocartografias para garantir suas representações no espaço muitas vezes excluídos dos mapas oficiais.

  Para concluir esse tópico avalio o quão importante foi a realização do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia nas comunidades quilombolas do Marajó no ano de 2005, bem como a publicação do fascículo “Quilombolas da ilha de Marajó, Pará”[9], em janeiro de 2006, como parte da série “Movimentos sociais, identidade coletiva e conflitos”, sendo o sétimo produto do projeto naquele ano.  Pelas falas dos quilombolas acima percebe-se claramente o quão o processo de realização dos mapas foi de um empoderamento político e até jurídico crucial para aquelas comunidades tanto naquele momento quanto depois no prosseguimento de suas pautas na luta pela efetivação e respeito de seus direitos.

O retorno a essa comunidade foi marcado ainda pelo lançamento de outro importante trabalho desenvolvido pelo PNCSA entre os anos de 2008 e 2014, o Boletim informativo 7 “Direitos territoriais, território de povos e comunidades tradicionais no Arquipélago de Marajó”, que fez parte do projeto “Mapeamento Social como instrumento de gestão territorial contra o desmatamento e a devastação: processos de capacitação de povos e comunidades tradicionais”, coordenado pela profa. Rosa Acevedo Marin, incluindo nas investigações os quilombolas de Portel, Curralinho e Cachoeira do Ararai. 

Nesse sentido é importante aqui reforçamos não somente a captação de recursos para projetos como do PNCSA, bem como o investimento no capital social, de modo, a fortalecer as bases organizativas dessas comunidades em prol de seus direitos e identidades. Muito embora os resultados possam incomodar sobremaneira os grupos dominantes locais, nacionais ou ainda até internacionais, o projeto tem sido reconhecido academicamente pelas organizações acadêmicas do Brasil, a exemplo da ABA, e ainda recebendo o patrocínio da Fundação Ford que tem todo um processo de seleção criterioso na avaliações dos projetos que se candidatam e ainda passando pela aprovação dos editais do BNDS (LEITE LOPES, 2013).

Sendo assim toda está mobilização social e acadêmica resultará ainda para sociedade e ás comunidades um vasto material, os boletins e fascículos, em que destacam as autocartografias e os excertos de depoimentos das comunidades pesquisadas e as demandas do grupo. Organizado e coordenado pela equipe de pesquisadores do PNCSA (Almeida, 2013).

Afinal é através dos mapas que o projeto viabiliza ás comunidades locais (re)construam suas enredos históricos e suas memórias, demarquem suas identidades por meio do livre diálogo entre seus pares e não sob a interferência, geralmente, arbitrária do Estado, inquirindo de forma etnocêntrica e populista apoiada por classificação externas que irá delinear as estratégias políticas, patrimonial e identitárias, assim como a definição das próprias memórias locais, mas sim a própria comunidade enquanto protagonistas e emancipadoras, detentoras de “conhecimento e ação política, funcionando também como comunidade argumentativa” ( Oliveira, 2013).

A partir destes direcionamentos e as vivências compartilhadas reflito sobre a fundamental troca de experiências acadêmicas, políticas e culturais, com o Quênia, seja na academia, seja com as comunidades tradicionais apenas reforçou algo que é ainda incipiente no Brasil, o intercâmbio com a África, o quanto esses dois mundos carregam similaridades em suas realidades, especialmente, as comunidades que nortearam essa análise. Pouco direcionamos os saberes científicos sobre a cultura afro-brasileira por meio das bases de onde essa cultura veio, a África. O que deixa a formação dos estudos africanos e afro-brasileiros no Brasil capenga! Intercambiar e se capacitar com a “ África” é preciso!

ÁFRICA E AMAZÔNIA INTERCÂMBIOS NECESSÁRIOS NA LUTA PELO PATRIMÔNIO HISTÓRICO, TERRITORIAL E CULTURAL AFRO-BRASILEIRO

Apesar de o “tradicional” não se reduzir a história, como avalia Almeida (2008) quando analisa os desígnios peculiares que marcam a categoria chamada “povos tradicionais” que engloba o quilombo da atualidade, o termo quilombo é um desígnio histórico que diz muito do que se projeta nas comunidades quilombolas contemporâneas em termos de uma organização política que possui toda uma articulação de  “ (...)“políticas de identidade” , da qual lançam mãos os agentes sociais objetivados em movimento para fazer frente aos seus antagonistas e aos aparatos de estados”, semelhante ao processo de organização , de luta e resistência que se deu com seus antepassados, os quilombos históricos perante as metrópoles ibéricas, certamente sem cair no erro do anacronismo e sem perder de vista a diversidade da composição dos membros,  bem como formações etno-históricas espaciais que marcam os quilombos contemporâneos.

Nesta direção penso como se faz urgente firmar acordos e parcerias entres as instituições acadêmicas africanas e brasileiras para que se melhor investigue os aspectos geográficos da África e suas relações com a formação territorial brasileira, assim como pensou Anjos (2006), é inadmissível “(...)realizarmos leituras do nosso território, de dimensões continentais e diversidade étnica particular, sem contemplar a geografia dos quilombos” (p.338) e as expressões da cultura africana em seus espaços vividos por meio de cartografia etno-histórica dos quilombos e/ou ainda dos povos afro-religiosos de matriz africana.

Finalizo essa análise inquirindo sobre a importância do intercâmbio de forma mais articulada com África por meio de parcerias acadêmicas, políticas e diplomáticas para enviar pesquisadores da Amazônia que estudam os matizes africanos da cultura afro-brasileira e, também, lideranças das comunidades tradicionais para vivenciar e se capacitar nas instituições e/ou nas comunidades das nações africanas que mais influenciam em suas pesquisas e/ou no âmbito da cultura afro das comunidades quilombolas ou afro-religiosas que estejam mais ligadas com determinados povos na África.

Avalio o quão enriquecedor para a comunidade do Mansu Nangetu poderia ser uma troca de experiências da Mametu Nangetu em Angola recapitulando a trajetória da nação que fundamenta sua casa em solos maternos angolanos, bem como seria para Angola um processo revivificar ritos afros que existem no Brasil que já não existem mais em terras angolanas. Assim como já fez Mãe Stella do Axé Opô Afonjá da Bahia que visitou a África, as terras de seus ancestrais, Nigéria e Benin, aprendendo dialetos e compartilhando da sua cultura apreendida em seu terreiro.  Tão importante quanto a ida de pesquisadores brasileiros

Toda essa jornada com os pesquisadores quenianos nas comunidades tradicionais reforça ainda proposição que tenho desenvolvido em minha tese de doutoramento sobre a importância de se pensar e elaborar uma cartografia etno-histórica dos povos tradicionais. Afinal é necessidade dos próprios sujeitos,  povos indígenas e comunidades tradicionais,  mobilizados  nesta  “Nova  Cartografia  Social  da  Amazônia”  a  retomarem  os  caminhos  e  conexões  concernentes  à  formação socioespacial , enquanto prova de direitos( ancestral e contemporâneos), que os ajudem não somente para a preservação de sua história, mas também como demarcadores de limites históricos de seus territórios e identidades  absorvidos  e  desrespeitados,  muitas  vezes,  pelo  avançar  da  urbanização ( Cardoso 2016; Oliveira 2013).

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berna. Terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de pastos: terras tradicionalmente ocupadas (coleção “tradição e ordenamento jurídico”). 2º Ed. Manaus: PGCSA-UFAM. 2008.192p.

__________, Alfredo Wagner Berna. Nova Cartografia Social da Amazônia. In:  Povos e Comunidades tradicionais-  Nova Cartografia Social.  Manaus.  2013.  Disponível: https://novacartografiasocial.com/catalogos/

ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos.  Cartografia e quilombo: Territórios étnicos africanos no Brasil. Africana Studia. No. 9 . Edição do Centro de Estudos africanos da Universidade do Porto (CEAUP). 2006.Pp. 337-355.

CARDOSO, Alanna Souto. Por uma cartografia etno-histórica da Amazônia colonial (séculos XVIII E XIX). Texto completo preparado para apresentação na sessão temática Cartografia indígena do 3º simpósio brasileiro de Cartografia histórica realizado pelo CRCH/ UFMG no período de 26 à 28 de outubro de 2016. Publicação nos anais do evento. Acesso https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio2016/

Leite Lopes, Sergio Leite.  A nova cartografia e os movimentos sociais.  In:  Povos e Comunidades tradicionais-  Nova Cartografia Social.  Manaus.  2013.  Disponível: https://novacartografiasocial.com/catalogos/

KLEIN, Herbert S. A demografia do tráfico atlântico de escravos para o Brasil. In. Estudos econômicos. Instituto de pesquisas econômicas-USP. Volume 17. Número 2. 1987.

OLIVEIRA, João Pacheco de. Soberania, democracia e cidadania. In. ALMEIDA, Alfredo  Wagner  B.  de e  FARIAS  JR.,  Emmanuel  de  Almeida  (org.).  Povos e Comunidades tradicionais-  Nova Cartografia Social.  Manaus.  2013.  Disponível: https://novacartografiasocial.com/catalogos/

IPHAN Programa Nacional de Patrimônio Imaterial Belém/PNCSA. Cartografia Social dos afrorreligiosos em Belém do Pará. Religiões Afro-brasileiras e ameríndias da Amazônia: afirmando identidades na diversidade.2012.

VERGOLINO E SILVA, Anaíza. O Tambor das flores. Uma análise da federação espírita umbandista e dos cultos afro-brasileiros do Pará (1966-1975). Editora Paka-Tatu. Belém-2015.


[1] Doutora pelo PPGDSTU - Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido do Núcleo de Altos Estudos da Amazônia (NAEA)/ UFPA. Sob orientação da Profa. Dra. Rosa Acevedo Marin. E colaboradora do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia(PNCSA)

[2] O referido projeto possibilita a realização de intercâmbio científico entre universidades no Quênia e no Brasil, sendo um facilitador para a permuta entre os movimentos sociais desses países, não obstante os diversos contextos sócio-políticos de seus agentes. Dentre os objetivos centrais desse projeto destacam-se: atividades de capacitação em procedimentos de mapeamento social para a elaboração de fascículos, incluindo as fontes orais, entrevistas com membros de povos e comunidades tradicionais ‒ seus saberes, relatos do cotidiano e perspectivas essenciais; um intercâmbio de experiências entre ambos os países a respeito dos direitos territoriais e aos recursos naturais; assim como o desenvolvimento de uma análise comparativa sobre o quadro legal do Quênia e do Brasil.

[3] O instituto Nangentu de tradição afro-religiosa e desenvolvimento social trata-se de uma associação sem fins lucrativos que por meio do terreiro dirigido por Mametu Nangetu de tradição bantu Angola busca preservar o culto Nkisse Nzumbarandá, bem como desenvolver projetos sociais e culturais que buscam debater, fortalecer as bases estruturais dos povos de matrizes africanas, os direitos de cidadania dos afro-religiosos e combater as distorções preconceituosas da mídia global no que confere seus cultos.

[4] Sobre os mapas, boletins, fascículos, dentre outros produtos resultantes pelos povos indígenas e comunidades tradicionais por meio do PNCSA acesse o site: https://novacartografiasocial.com/

[5] No Quênia atual a população é praticamente cristã, apenas uma minoria é pertencentes ao que se chama religiões tradicionais africanas.

[6] No caso do Brasil os africanos que desembarcaram em portos brasileiros vieram dos seguintes países e regiões: Cacheu, Guiné-Bissau, Cabo de Verde, Serra Leoa, Costa da Mina e Angola (Luanda e Benguela). Ver: KLEIN, Herbert S. A demografia do tráfico atlântico de escravos para o Brasil. In. Estudos econômicos. Instituto de pesquisas econômicas-USP. Volume 17. Número 2. 1987.

[7] O projeto Cartografia Social dos Afro-religiosos em Belém do Pará teve como produtos finais a publicação de um mapa e um livro sobre as nações Angola, Jeje Savalu, Ketu, Mina Jejê Nagô, Umbanda e Pajelança. Segundo Martins (2012), “o trabalho desenvolvido a partir de encontros/oficinas entre afrorreligiosos e pesquisadores, propiciou a recriação de tradições no presente, reforçando a dimensão coletiva de lutas pelo reconhecimento de diferenças e afirmação de legitimidade religiosa dos povos de terreiro” (P.11).

[8] Em itálico são os trechos da fala direta dos quilombolas.

[9] Treze comunidades participaram de todo o processo por meio de seus representantes. O município de Salvaterra abarca um total de quinze comunidades quilombolas. São elas: Bacabal, Bairro Alto, Boa Vista, Pau furado, Vila União, Salvá, Campina, Caldeirão, Mangueiras, Providência, deus Ajude, são Benedito, Paixão, Siricari e rosário.

Por Alanna Souto[1]

 

APRESENTAÇÃO

Entre os dias de 19 de março e 07 de abril de 2017 desembarcaram em terras brasileiras, especificamente, nos estados do Maranhão, Amazonas e Pará, pesquisadores quenianos, Prof. Samuel Owuor (University of Nairobi), Hillary Ogina ( Kenya Land Alliance- KLA) e Johanna Wanjala (Kenya Land Alliance- KLA) em intercâmbio, cooperação técnica e científica no âmbito do projeto “Cartografia Social, capacitação técnica de pesquisadores e movimentos sociais no Quênia e no Brasil”[2] em parceria do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) juntamente com a Universidade do Estado do Amazonas (UEA), o Programa de Pós-graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia (PPGSPA) da UEMA e o Núcleo de Altos Estudos da Amazônia (NAEA-UFPA) .

A dinâmica de atividades nestes dias se distribuíram entre visitas institucionais; pesquisa de campo, trocas de experiências e de formação nas comunidades tradicionais que atuam junto com o PNCSA.

Vou tratar nesse texto de dois momentos em que estive participando junto da equipe do PNCSA que acompanhou os pesquisadores do Quênia nessa jornada de trabalho no Pará em suas visitas atuantes nas comunidades tradicionais que visavam especialmente, apreender as técnicas do PNCSA enquanto objeto de pesquisa em que as comunidades investigadas passam ser a viabilizadores de seus próprios croquis e mapas, realizando assim um outro tipo de cartografia em que o Estado em seu mapeamento administrativo não visibiliza em suas representações do espaço- o espaço concebido . Tais [auto] cartografias mapeiam seu território, geograficamente e etnograficamente a partir dos seus próprios olhares e saberes, valorizando e empoderando assim suas identidades coletivas e também servindo de alicerce pela luta de seus direitos territoriais.

Sendo assim o primeiro momento dessa troca de saberes entre Quênia/África e comunidade tradicional paraense em que estive presente se deu em Belém do Pará quando levamos os pesquisadores do Quênia ao Instituto Nangetu[3] de tradição afro-religiosa e desenvolvimento social, comandado pela Mametu Nangetu em seu terreiro. O segundo momento se deu quando visitamos as comunidades quilombolas do Marajó em que houve o compartilhamento de trocas de experiências entre os quenianos visitantes e os quilombolas do Marajó.

O objetivo desta reflexão visa tratar da importância do intercâmbio acadêmico entre África e Amazônia não somente para o desenvolvimento e aplicabilidade de projetos sociais de pesquisa nas comunidades tradicionais que envolvem esses dois “mundos” ,que tem como ponto comum central os destinos cruzados violentamente em tempos de colonização , mas sobretudo, para o melhor conhecimento da memória e dos contextos históricos que envolve a trajetória dos quilombos da Pan Amazônia e África, bem como a relação similar com as realidades enfrentadas pelas comunidades tradicionais do Quênia, como bem foram avaliadas pelos pesquisadores quenianos.

 

Visitando um “Quilombo urbano” – Povo de terreiro de matriz africana Mansu Nangetu

No dia 30 de março do corrente os quenianos Hilary Ogina (Kenya Land Alliance), Johanna Wanjala (Kenya Land Alliance) e Samuel Owuor (Universiy of Nairobi) realizaram uma visita institucional inicial ao Núcleo de Altos Estudos da Amazônia da UFPA com direito à boas vindas pela coordenação do programa de pós-graduação dessa instituição (PPGDSTU) e pela equipe de colaboradores do PNCSA coordenada pela profa. Rosa Acevedo Marin, composto de discentes e docentes da UFPA, dentre os presentes é merecido registrar:  Solange Gayoso (PNCSA/UFPA), Dalva Maria Foro da Costa (Discente do Curso de Educação do Campo, Abaetetuba), Eliana Teles (PNCSA/Campus Abaetetuba-UFPA), Cristiano Bento, (PPGCS/UFPA) Hisakhana Corbin (Vice-coordenador do PPDSTU/UFPA), Rosa Acevedo (PNCSA/NAEA-UFPA), Bruna Caldas (PPGA/UFPA/PNCSA), Jurandir Novaes (PNCSA/Faculdade de Economia-UFPA), Alanna Souto Cardoso (PNCSA/PPGDSTU/UFPA), Elielson Silva (PNCSA/PPGDSTU/UFPA), Thiago Alan Guedes Sabino (PNCSA/UFPA), Danilo Rezegue (PNCSA/PPGDSTU/UFPA), Nelson Ramo Bastos (UFPA), Ruthane Silva (NAEA/UFPA) e Kerri Brown (Doutoranda-Universidade Metodista de Texas).

Feita as boas vindas, a profa. Rosa Acevedo fez uma breve exposição dos objetivos que abarcam o projeto “Cartografia Social e Treinamento Técnico de Pesquisadores e Movimentos Sociais em Quênia e Brasil” aos presentes e logo em seguida a equipe de trabalho do PNCSA fez uma rápida apresentação dos trabalhos mais recentes desenvolvido pelo PNCSA em que o principal questionamento dos quenianos era como se chegava até os mapas, sendo assim mostrado alguns croquis e mapas feitos por algumas comunidades tradicionais e uma explicação por parte de quem participou da equipe que compôs a gestão destes trabalhos, direcionando e munindo as comunidades de ferramentas para a realização de suas auto cartografias locais[4].

Finalizada a reunião institucional levamos os pesquisadores quenianos até o terreiro e instituto Mansu Nangetu para conhecer esse povo tradicional de matriz afro-religiosa que participou da elaboração do mapeamento dos afro-religiosos em Belém do Pará, coordenado pelo PNCSA.

A visita no Mansu Nagentu contou com a presença da mãe de santo e dirigente do instituto, Oneide Rodrigues, mais conhecida como Mametu Nangetu. E teve como intérprete a doutoranda naquele momento, a afro-americana Kerri Brown.

Nessa ocasião os quenianos foram muito mais ouvintes dos relatos feitos pela Mametu Nangetu, especialmente, porque as religiões tradicionais do Quênia[5] não fizeram parte daquelas que vieram com diáspora africana forçada pelo tráfico de escravos para as Américas no período da colonização[6], contudo ter conhecido uma comunidade tradicional de terreiro de raiz angolana os ajuda apreender de que forma se dar essa relação entre ciência e os saberes afro-religiosos para então relacionar e aplicar o mapeamento com as realidades das comunidades tradicionais quenianas, especialmente, aquelas absorvidas pelos cultos tradicionais.

Mametu Nangetu refletiu sobre a importância de trabalhos como o mapeamento dos afro-religiosos em Belém do Pará, coordenado pelo PNCSA[7], que ajudou a visibilizar as comunidades tradicionais de matriz africana, bem como combater o preconceito, a intolerância religiosa e até mesmo a repressão do Estado, afinal como bem enfatiza Arthur Leandro (Tatá Kinamboji) em um dos relatos contido no livro resultado dessa pesquisa: “(...) a constituição nos dar o direito de culto , o direito de consciência religiosa, mas o Estado reprime” (IPHAN/PNCSA, 2012,p.97). 

É nesse sentido que trabalhos realizados pelo PNCSA com os povos afro-religiosos tanto no Maranhão quanto em Belém do Pará buscam dar dimensão para os povos de terreiros enquanto categoriais sociais detentoras de um saber tradicional que se expande para além do espaço físico do terreiro em suas lutas por direitos e (re)existência. Um exemplo disso são as constituições de mapas temáticos que a partir dos seu espaço das representações cartografado buscam demonstrar a relação do terreiro como uma forma de constituir uma visibilidade que pode reverter exclusões e preconceitos dirigidos aos membros dessas comunidades ou ainda o fortalecimento social de suas organizações coletivas e representativas.

Outro ponto importante destas auto cartografias dos povos afro-religiosos são suas territorialidades visibilizadas nos mapas. Sendo eles os protagonistas do processo a partir de seus próprios critérios para definir os elementos que compõe seus cultos religiosos e sua autodefinição. E a partir dos encontros e oficinas realizadas elaboraram discursos e relatos sobre as vivências que passam enquanto afro-religiosos dentro e fora dos terreiros. Tais registros relatados pelos próprios agentes resultou na produção de um saber que se traduz como um conhecimento científico específico por meio de suas práticas atualizadas. Nos mapas eles representam suas casas, seus locais de coleta de ervas e espaços sagrados (IPHAN, PNCSA, 2012, p.12).

            Mametu Nangetu lembra ainda em seu relato aos quenianos e a equipe do PNCSA de um trabalho pioneiro com os povos de terreiro que merece o registro nessa análise. A dissertação de mestrado pioneira da profa. Anaíza Vergolino, “O tambor das flores”, nos anos de 1970, inaugura no mundo acadêmico amazônico uma percepção política da organicidade dos terreiros de umbanda em Belém do Pará. Mametu recorda do papel de desbravadora que fez a pesquisadora em uma época que as organizações afro-religiosas no Brasil estavam tateando sua representação formal, a federação Espírita Umbandista e dos Cultos afro-brasileiros do Estado do Pará mostrava-se pelas lentes de Vergolino bem firme e articulada. Assim como ela bem retrata uma das festas mais bonitas e calorosas da federação, o Tambor das flores, revelando toda alegria e maestria de um saber tradicional, especialmente, dos povos de umbanda e o tambor de mina mais retratados na obra.

E já no final do diálogo conosco Mametu Nangetu finaliza sua reflexão fazendo uma referência histórica ao seu terreiro, chamando-o de “quilombo urbano” em alusão aos quilombos históricos que correspondia espaços de resistência nos sertões das Capitanias, próximos de rios e alagados diante das arregimentações de trabalho, a repressão e a escravidão impostos pelo Estado Colonial. O chamado “campo negro” por Flávio Gomes (2005), não correspondia apenas negros insurgentes da senzala e dos seus senhores, mas todo uma teia de intercâmbios sociais e econômicos entre os fugitivos e escravos, grupos indígenas, vendeiros, negociantes, pequenos proprietários e eventualmente até fazendeiros, atores sociais que se tornaram direta ou indiretamente seus aliados. 

É neste sentido de espaço de resistência negra afro-religiosa que Mametu chama o seu terreiro de “quilombo urbano”, simbolicamente, pois assim como os quilombos do passado colonial composto por atores advindo de diversos segmentos sociais e etnias, mas sobretudo, o povo negro que compõe o seu terreiro de raíz Angola que luta pela manutenção de seus cultos e práticas historicamente, bem como a luta contra a repressão do Estado e demarcação de seus direitos territoriais no espaço urbano.

 

 

O QUÊNIA E AS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO MARAJÓ

            A atividade com as comunidades quilombolas no arquipélago do Marajó e pesquisadores quenianos se deu no dia 01 de abril, organizada pela equipe de trabalho do PNCSA sob a coordenação da Profa. Rosa Acevedo Marin.

            Atividade de capacitação entre os pesquisadores do Quênia e comunidades quilombolas foi dividido em dois momentos.

  1. Apresentações gerais, relatos de experiências e da aplicabilidade do PNCSA por parte das comunidades quilombolas

Pela parte da manhã no dia 01 de abril foi o momento das apresentações. Inicialmente apresentaram-se os convidados: Prof. Samuel Owuor (Universidade de Nairobi) – “Estou aqui em conjunto com os dois pesquisadores de Quênia para trocar experiências, aprender e apreender com a produção do mapeamento social dos quilombolas do Marajó”; Johanna Wanjala- (Kenya Land Alliance- KLA), especialista em geoprocessamento. “E eu gostaria de apreender com as técnicas aplicadas dos mapas geoprocessados das autocartografias realizadas pelas comunidades do Marajó a partir do método do PNCSA”; Hillary Ogina (Kenya Land Alliance- KLA) também se manifesta no sentido da troca de experiência, da apreensão das técnicas e método do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia enquanto objeto de pesquisa social que será aplicado, conforme as realidades das comunidades tradicionais no Quênia.

Em seguida as lideranças das comunidades quilombolas presentes se apresentam aos convidados nominalmente e informam suas funções nas comunidades. Fizeram-se presentes sete comunidades: Pau furado, Bacabal, Deus ajude, Providência, Bairro alto, Rosário e Tartarugueira. Posteriormente foram elencados lideranças de algumas comunidades para relatar sinteticamente a realidade de sua comunidade tradicional quilombola e aplicabilidade do mapeamento social em suas comunidades, afinal os quilombolas são os principais agentes do projeto, atuam como pesquisadores de todo o processo de elaboração dos mapas.

  • Seguem alguns resumos e trechos dos relatos dos pesquisadores quilombolas[8]:

Roberto, quilombo sítio conceição no município de Barcarena. Faço parte do grupo de alunos do PNCSA do mapeamento dos quilombolas indígenas do município. A importante experiência do PNCSA de mapeamento da auto cartografias indígenas e quilombolas que reivindicam reconhecimento por lei de suas identidades e territorialidades não somente quilombolas, mas também indígenas. Nesse sentido as comunidades produzem seus croquis que irão resultar nos mapas das comunidades. Já possuem o certificado de quilombolas pela fundação de palmares. E ainda estão lutando junto ao INCRA pelos seus direitos de terras.

Maria José- Fala da experiência do PNCSA como de fundamental importância para compreender os limites de seus territórios e de suas territorialidades perdidas. Hoje ela mora em pau furado e percebe que a luta não é apenas do pau furado, mas uma luta por direitos de todos as comunidades de Marajó. E a intensificação de conflitos com fazendeiros sob respaldo do governo federal atual.

José Luiz-      Fala um pouco da experiência da comunidade Deus ajude que passou a unir forças entre comunidades quilombolas e a universidades. E avalia como as auto cartografias auxiliadas pelos pesquisadores do PNCSA passa a se conflitar com os interesses e os latifúndios dos fazendeiros. Na comunidade de Salvar, os fazendeiros estavam impedindo de mesmo o funcionamento regular das comunidades quilombolas. O PNCSA também desperta a luta pelos direitos coletivos e a recuperação da memória. Estes mapas da PNCSA retratam as auto representações espaciais, de modo, a evidenciar suas auto identidades territoriais não retratadas nos mapas oficiais. A criação do grupo juventude Abayomi que significa cuidar de mim. A ideia é capacitar jovens para se fazerem lideranças em defesa das comunidades quilombolas. E grande contentamento do retorno do PNCSA para o Marajó.

Reginaldo, profa. música - Comunidades quilombolas tartarugueira. Antigamente a terra era de um fazendeiro que foi ocupada há mais de cem anos por descendentes de escravos. A comunidade já avançou muito no que se refere em alguns de seus direitos coletivos. Tartarugueira passa ser referência para as comunidades mais próximas. Tartarugueira fica em frente da Baia do Guajará. Próximo de Santana.  Tartarugueira não está representada no mapa oficial e por meio do seu destaque na luta por seus direitos irá ser representada no próximo mapa oficial do Estado.Tartarugueira também se destaca por suas praias e beleza natural. Na comunidade não pode existir hotéis e nem carros. A visível melhorias das casas e dos direitos básicas de moradia foram garantidas pelo governo federal. Associação quilombola de tartarugueira já muito avançou em questões no que se refere as questões de acessos a sua sobrevivência por meio da luta e garantia do seus direitos sociais. A dificuldade de transporte para Belém ainda continua ser um grande obstáculo de acesso à capital.

  • Dalva, compartilha das suas experiências da comunidade de São Raimundo do Alto Acará. Atualmente mora em Nazaré. É uma comunidade ribeirinha assentada. Avalia que a luta no Acará ainda está muito distante da realidade quando comparado com algumas conquistas de direitos alcançados pelas comunidades quilombolas do Marajó. A maior parte das fábricas de extração de óleo está localizada no município de Acará, e hoje, advindas da empresa Bio palma da vale do rio doce, muitos rios estão sendo poluídos e devastados pela exploração não sustentáveis em mais de 90 comunidades católicas. Atualmente a profa. Rosa Acevedo está buscando desenvolver projetos de identidades e luta pelos direitos territoriais coletivos.

 

Finalizado os compartilhamentos de experiências dos elencados representantes quilombolas abriram-se a oportunidade para que os pesquisadores quenianos tratarem do que apreenderem dos relatos.

Prof. Samuel, começa a reflexão dizendo que os relatos proferidos lembram muito as experiências vividas pelas comunidades tradicionais no Quênia. Diz ainda que a mulher e a juventude, também, são atores sociais muitos ativos na sociedade queniana em diversas frentes de luta. E que falará mais destas questões pela tarde.

Hilary diz também, assim como profa. Samuel que há muitos conflitos raciais entre tribos e os grupos dominantes, apesar do Estado do Quênia tem uma constituição avançada tal qual tem o Brasil.

Johana, eu também estou muito encorajada com as experiências do PNCSA nas comunidades pela sua luta de direitos e de entender o espaço de forma diferenciada. E mais tarde falaremos mais sobre isso (tradução livre, Kerri Browm).

 

 

 

 

  1. Pela parte de tarde abriram-se para as explanações dos pesquisadores quenianos aos quilombolas do Marajó

Os pesquisadores quenianos trataram das experiências do Quênia e as similaridades com a realidade das comunidades locais quenianas para viabilidade do Projeto Nova Cartografia, conforme as vivências dessas comunidades tradicionais.

O profa. Samuel inicia a reflexão lamentando o não comparecimento de Richard Chemuchuk, representante do povo Endorois, do Quênia, pois teve problema de visto. Ele seria o representante de uma comunidade indígena africana parecida com as comunidades quilombolas do Marajó, diz ele. E profere “trata-se de parceria da universidade do Quênia, PNCSA e UEMA. Levaremos as experiências do PNCSA para implementar nas comunidades quenianas com auxílio dos profissionais da ONG KLA”.

Ele destaca o papel da mulher e o da juventude nas comunidades quenianas. As mulheres passaram tomar a frente dos movimentos se tornando visível em situações pouco frequentes numa sociedade conservadora. Segue alguns trechos da sua fala:

Agora gostaria de compartilhar a história de uma mulher importante no Quênia, que faleceu em setembro de 2011, a professora Wangari Maathai. Ela foi uma mulher muito forte, principalmente nas questões que envolve a preservação do meio ambiente e do empoderamento da mulher. Fez parte do movimento cinturão verde que objetivava plantar quantas árvores foram possíveis. Centenas de árvores foram plantadas por mulheres. As mulheres diziam: “nós precisávamos das árvores para nos abrigar, as mulheres precisam usar árvores de diversas maneiras”.

A profa. Wagari Maathai foi muito além, protegeu as árvores que o governo queria devastar. Defender os espaços verdes da universidade e das cidades. Ela invocava centenas de mulheres do cinturão verde a defender os espaços verdes que o governo desejava explorar. Este governo convocava a polícia para reprimir o movimento.

Então mulheres passaram a usar diversas estratégias para se proteger. Construção de tendas para impedir o acesso do governo e polícia. Em outro momento ficaram nuas em suas tendas. E somente assim a polícia parou de invadir as tendas, pois na cultura queniana, os homens não podem ver as mães nuas.

A juventude que está hoje aqui tem o compromisso com suas identidades e com seus futuros. A juventude encoraja as outras gerações a lutar por seus direitos e seus territórios ancestrais. (Tradução livre, Kerri Browm)

 

            Hilary, trata da ONG Aliança da terra, resumidamente e didaticamente.

Aliança do Quênia une várias atores de diversas cidades. E vivem uma realidade semelhante com as vivências relatadas pelos representantes das comunidades quilombolas.

Agricultura exerce um papel muito importante. É historicamente, assim como o Brasil, os colonizadores expropriaram as terras quenianas.  E infelizmente, o Quênia estava sob o controle dos britânicos. Esses forçaram os quenianos abandonarem suas terras. E os colonizadores rompendo com as perspectiva queniana “terra coletiva”. Nos últimos anos as leis foram mudando e algumas terras foram garantidas para a população negra.

Há um outro problema que se parece com o que ocorre no Brasil. Os negros que se comportam como “branco”, assim passaram a elaborar leis da terra para favorecer os brancos e a elite negra.

Em 2020 será implementado uma nova constituição que muita semelhança tem com a constituição brasileira de 1988. Uma coisa é ter uma constituição no papel. Outra coisa é implementar a lei do papel.

Outra luta é garantir os direitos da terra as comunidades quenianas.

Por isso eles estão realizando essas atividades em parceria com o PNCSA a fim de levar as experiências das comunidades quilombolas com suas autocartografias para implementar na produção de uma nova cartografia que visibilize as comunidades quilombolas. (Tradução livre, Kerri Browm)

 

Johanna- Trata das realidades de terras na África.

Há uma grande diferença entre a terra privada e a terra das comunidades. E os donos de propriedades sempre desrespeitam as terras das comunidades. Ano passado uma nova lei foi aprovada em relação a propriedade privada.

Muitos da terra do Quênia sofrem com exploração do petróleo e dos minerais.

O que estamos aprendendo aqui levaremos para as comunidades a fim de que essas comunidades se habilitem e se instrumentalize em lutar pelos seus direitos usando ferramentas as autocartografias para garantir suas representações no espaço muitas vezes excluídos dos mapas oficiais.

 

            Para concluir esse tópico avalio o quão importante foi a realização do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia nas comunidades quilombolas do Marajó no ano de 2005, bem como a publicação do fascículo “Quilombolas da ilha de Marajó, Pará”[9], em janeiro de 2006, como parte da série “Movimentos sociais, identidade coletiva e conflitos”, sendo o sétimo produto do projeto naquele ano.  Pelas falas dos quilombolas acima percebe-se claramente o quão o processo de realização dos mapas foi de um empoderamento político e até jurídico crucial para aquelas comunidades tanto naquele momento quanto depois no prosseguimento de suas pautas na luta pela efetivação e respeito de seus direitos.

            O retorno a essa comunidade foi marcado ainda pelo lançamento de outro importante trabalho desenvolvido pelo PNCSA entre os anos de 2008 e 2014, o Boletim informativo 7 “Direitos territoriais, território de povos e comunidades tradicionais no Arquipélago de Marajó”, que fez parte do projeto “Mapeamento Social como instrumento de gestão territorial contra o desmatamento e a devastação: processos de capacitação de povos e comunidades tradicionais”, coordenado pela profa. Rosa Acevedo Marin, incluindo nas investigações os quilombolas de Portel, Curralinho e Cachoeira do Ararai. 

            Nesse sentido é importante aqui reforçamos não somente a captação de recursos para projetos como do PNCSA, bem como o investimento no capital social, de modo, a fortalecer as bases organizativas dessas comunidades em prol de seus direitos e identidades. Muito embora os resultados possam incomodar sobremaneira os grupos dominantes locais, nacionais ou ainda até internacionais, o projeto tem sido reconhecido academicamente pelas organizações acadêmicas do Brasil, a exemplo da ABA, e ainda recebendo o patrocínio da Fundação Ford que tem todo um processo de seleção criterioso na avaliações dos projetos que se candidatam e ainda passando pela aprovação dos editais do BNDS (LEITE LOPES, 2013).

Sendo assim toda está mobilização social e acadêmica resultará ainda para sociedade e ás comunidades um vasto material, os boletins e fascículos, em que destacam as autocartografias e os excertos de depoimentos das comunidades pesquisadas e as demandas do grupo. Organizado e coordenado pela equipe de pesquisadores do PNCSA (Almeida, 2013).

Afinal é através dos mapas que o projeto viabiliza ás comunidades locais (re)construam suas enredos históricos e suas memórias, demarquem suas identidades por meio do livre diálogo entre seus pares e não sob a interferência, geralmente, arbitrária do Estado, inquirindo de forma etnocêntrica e populista apoiada por classificação externas que irá delinear as estratégias políticas, patrimonial e identitárias, assim como a definição das próprias memórias locais, mas sim a própria comunidade enquanto protagonistas e emancipadoras, detentoras de “conhecimento e ação política, funcionando também como comunidade argumentativa” ( Oliveira, 2013).

A partir destes direcionamentos e as vivências compartilhadas reflito sobre a fundamental troca de experiências acadêmicas, políticas e culturais, com o Quênia, seja na academia, seja com as comunidades tradicionais apenas reforçou algo que é ainda incipiente no Brasil, o intercâmbio com a África, o quanto esses dois mundos carregam similaridades em suas realidades, especialmente, as comunidades que nortearam essa análise. Pouco direcionamos os saberes científicos sobre a cultura afro-brasileira por meio das bases de onde essa cultura veio, a África. O que deixa a formação dos estudos africanos e afro-brasileiros no Brasil capenga! Intercambiar e se capacitar com a “ África” é preciso!

ÁFRICA E AMAZÔNIA INTECÂMBIOS NECESSÁRIOS NA LUTA PELO PATRIMÔNIO HISTÓRICO, TERRITORIAL E CULTURAL AFRO-BRASILEIRO

Apesar de o “tradicional” não se reduzir a história, como avalia Almeida (2008) quando analisa os desígnios peculiares que marcam a categoria chamada “povos tradicionais” que engloba o quilombo da atualidade, o termo quilombo é um desígnio histórico que diz muito do que se projeta nas comunidades quilombolas contemporâneas em termos de uma organização política que possui toda uma articulação de  “ (...)“políticas de identidade” , da qual lançam mãos os agentes sociais objetivados em movimento para fazer frente aos seus antagonistas e aos aparatos de estados”, semelhante ao processo de organização , de luta e resistência que se deu com seus antepassados, os quilombos históricos perante as metrópoles ibéricas, certamente sem cair no erro do anacronismo e sem perder de vista a diversidade da composição dos membros,  bem como formações etno-históricas espaciais que marcam os quilombos contemporâneos.

Nesta direção penso como se faz urgente firmar acordos e parcerias entres as instituições acadêmicas africanas e brasileiras para que se melhor investigue os aspectos geográficos da África e suas relações com a formação territorial brasileira, assim como pensou Anjos (2006), é inadmissível “(...)realizarmos leituras do nosso território, de dimensões continentais e diversidade étnica particular, sem contemplar a geografia dos quilombos” (p.338) e as expressões da cultura africana em seus espaços vividos por meio de cartografia etno-histórica dos quilombos e/ou ainda dos povos afro-religiosos de matriz africana.

Finalizo essa análise inquirindo sobre a importância do intercâmbio de forma mais articulada com África por meio de parcerias acadêmicas, políticas e diplomáticas para enviar pesquisadores da Amazônia que estudam os matizes africanos da cultura afro-brasileira e, também, lideranças das comunidades tradicionais para vivenciar e se capacitar nas instituições e/ou nas comunidades das nações africanas que mais influenciam em suas pesquisas e/ou no âmbito da cultura afro das comunidades quilombolas ou afro-religiosas que estejam mais ligadas com determinados povos na África.

Avalio o quão enriquecedor para a comunidade do Mansu Nangetu poderia ser uma troca de experiências da Mametu Nangetu em Angola recapitulando a trajetória da nação que fundamenta sua casa em solos maternos angolanos, bem como seria para Angola um processo revivificar ritos afros que existem no Brasil que já não existem mais em terras angolanas. Assim como já fez Mãe Stella do Axé Opô Afonjá da Bahia que visitou a África, as terras de seus ancestrais, Nigéria e Benin, aprendendo dialetos e compartilhando da sua cultura apreendida em seu terreiro.  Tão importante quanto a ida de pesquisadores brasileiros

Toda essa jornada com os pesquisadores quenianos nas comunidades tradicionais reforça ainda proposição que tenho desenvolvido em minha tese de doutoramento sobre a importância de se pensar e elaborar uma cartografia etno-histórica dos povos tradicionais. Afinal é necessidade dos próprios sujeitos,  povos indígenas e comunidades tradicionais,  mobilizados  nesta  “Nova  Cartografia  Social  da  Amazônia”  a  retomarem  os  caminhos  e  conexões  concernentes  à  formação socioespacial , enquanto prova de direitos( ancestral e contemporâneos), que os ajudem não somente para a preservação de sua história, mas também como demarcadores de limites históricos de seus territórios e identidades  absorvidos  e  desrespeitados,  muitas  vezes,  pelo  avançar  da  urbanização ( Cardoso 2016; Oliveira 2013).

 


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berna. Terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de pastos: terras tradicionalmente ocupadas (coleção “tradição e ordenamento jurídico”). 2º Ed. Manaus: PGCSA-UFAM. 2008.192p.

__________, Alfredo Wagner Berna. Nova Cartografia Social da Amazônia. In:  Povos e Comunidades tradicionais-  Nova Cartografia Social.  Manaus.  2013.  Disponível: https://novacartografiasocial.com/catalogos/

ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos.  Cartografia e quilombo: Territórios étnicos africanos no Brasil. Africana Studia. No. 9 . Edição do Centro de Estudos africanos da Universidade do Porto (CEAUP). 2006.Pp. 337-355.

CARDOSO, Alanna Souto. Por uma cartografia etno-histórica da Amazônia colonial (séculos XVIII E XIX). Texto completo preparado para apresentação na sessão temática Cartografia indígena do 3º simpósio brasileiro de Cartografia histórica realizado pelo CRCH/ UFMG no período de 26 à 28 de outubro de 2016. Publicação nos anais do evento. Acesso https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio2016/

Leite Lopes, Sergio Leite.  A nova cartografia e os movimentos sociais.  In:  Povos e Comunidades tradicionais-  Nova Cartografia Social.  Manaus.  2013.  Disponível: https://novacartografiasocial.com/catalogos/

KLEIN, Herbert S. A demografia do tráfico atlântico de escravos para o Brasil. In. Estudos econômicos. Instituto de pesquisas econômicas-USP. Volume 17. Número 2. 1987.

OLIVEIRA, João Pacheco de. Soberania, democracia e cidadania. In. ALMEIDA, Alfredo  Wagner  B.  de e  FARIAS  JR.,  Emmanuel  de  Almeida  (org.).  Povos e Comunidades tradicionais-  Nova Cartografia Social.  Manaus.  2013.  Disponível: https://novacartografiasocial.com/catalogos/

IPHAN Programa Nacional de Patrimônio Imaterial Belém/PNCSA. Cartografia Social dos afrorreligiosos em Belém do Pará. Religiões Afro-brasileiras e ameríndias da Amazônia: afirmando identidades na diversidade.2012.

VERGOLINO E SILVA, Anaíza. O Tambor das flores. Uma análise da federação espírita umbandista e dos cultos afro-brasileiros do Pará (1966-1975). Editora Paka-Tatu. Belém-2015.

 

 


[1] Doutora pelo PPGDSTU - Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido do Núcleo de Altos Estudos da Amazônia (NAEA)/ UFPA. Sob orientação da Profa. Dra. Rosa Acevedo Marin. E colaboradora do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia(PNCSA)

[2] O referido projeto possibilita a realização de intercâmbio científico entre universidades no Quênia e no Brasil, sendo um facilitador para a permuta entre os movimentos sociais desses países, não obstante os diversos contextos sócio-políticos de seus agentes. Dentre os objetivos centrais desse projeto destacam-se: atividades de capacitação em procedimentos de mapeamento social para a elaboração de fascículos, incluindo as fontes orais, entrevistas com membros de povos e comunidades tradicionais ‒ seus saberes, relatos do cotidiano e perspectivas essenciais; um intercâmbio de experiências entre ambos os países a respeito dos direitos territoriais e aos recursos naturais; assim como o desenvolvimento de uma análise comparativa sobre o quadro legal do Quênia e do Brasil.

[3] O instituto Nangentu de tradição afro-religiosa e desenvolvimento social trata-se de uma associação sem fins lucrativos que por meio do terreiro dirigido por Mametu Nangetu de tradição bantu Angola busca preservar o culto Nkisse Nzumbarandá, bem como desenvolver projetos sociais e culturais que buscam debater, fortalecer as bases estruturais dos povos de matrizes africanas, os direitos de cidadania dos afro-religiosos e combater as distorções preconceituosas da mídia global no que confere seus cultos.

[4] Sobre os mapas, boletins, fascículos, dentre outros produtos resultantes pelos povos indígenas e comunidades tradicionais por meio do PNCSA acesse o site: https://novacartografiasocial.com/

[5] No Quênia atual a população é praticamente cristã, apenas uma minoria é pertencentes ao que se chama religiões tradicionais africanas.

[6] No caso do Brasil os africanos que desembarcaram em portos brasileiros vieram dos seguintes países e regiões: Cacheu, Guiné-Bissau, Cabo de Verde, Serra Leoa, Costa da Mina e Angola (Luanda e Benguela). Ver: KLEIN, Herbert S. A demografia do tráfico atlântico de escravos para o Brasil. In. Estudos econômicos. Instituto de pesquisas econômicas-USP. Volume 17. Número 2. 1987.

[7] O projeto Cartografia Social dos Afro-religiosos em Belém do Pará teve como produtos finais a publicação de um mapa e um livro sobre as nações Angola, Jeje Savalu, Ketu, Mina Jejê Nagô, Umbanda e Pajelança. Segundo Martins (2012), “o trabalho desenvolvido a partir de encontros/oficinas entre afrorreligiosos e pesquisadores, propiciou a recriação de tradições no presente, reforçando a dimensão coletiva de lutas pelo reconhecimento de diferenças e afirmação de legitimidade religiosa dos povos de terreiro” (P.11).

[8] Em itálico são os trechos da fala direta dos quilombolas.

[9] Treze comunidades participaram de todo o processo por meio de seus representantes. O município de Salvaterra abarca um total de quinze comunidades quilombolas. São elas: Bacabal, Bairro Alto, Boa Vista, Pau furado, Vila União, Salvá, Campina, Caldeirão, Mangueiras, Providência, deus Ajude, são Benedito, Paixão, Siricari e rosário.

 

Tópico: ÁFRICA E AMAZÔNIA NAS VEREDAS DA CARTOGRAFIA SOCIAL DOS POVOS TRADICIONAIS: DIÁLOGOS ENTRE DOIS MUNDOS

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